Metafísica ou pós-metafísica? A propósito do diálogo entre razão secular e razão religiosa
No artigo a seguir, o filósofo italiano Vittorio Possenti comenta o artigo do filósofo alemão Jürgen Habermas na Neue Zürcher Zeitung de 10-02-2007. Possenti é professor de Filosofia junto à Universidade de Veneza, onde dirige o Centro Interdepartamental de Pesquisa sobre os Direitos Humanos (CIRDU). Anteriormente ensinou História da Filosofia moral. Os seus estudos são endereçados à política, à metafísica e à ética. Também o cardeal italiano Camillo Ruini reage a este artigo de Habermas.
Vittorio Possenti autor de cerca de vinte livros, alguns dos quais traduzidos em várias línguas. Coordena Seconda navigazione. Annuario di filosofia (Mondadori, Milão), é redator das revistas Per la filosofia, La società, Sensus Communis; colabora com alguns jornais. É membro do Comitê Nacional de Bioética e da Pontifícia Academia das Ciências Sociais.
O diálogo entre o pensamento secular e o pensamento religioso se mantém, no Ocidente, como encruzilhada permanente, conjugada segundo formas que vão do extremo da total separação e estranheza àquela de uma íntima colaboração. Há alguns lustros. Estão em crescimento os paradigmas de certa concórdia que vêem as duas razões chamadas a colaborarem com o objetivo de um entendimento civil, como também de freio contra um excesso de autodestituição da razão.
Uma expressão significativa de tal opção encontra-se numa recente intervenção de J. Habermas, publicada na Neue Zürcher Zeitung de 10 de fevereiro de 2007, com o título "Contra o derrotismo [e desânimo] da razão moderna. Por um novo pacto entre fé e razão". Uma intervenção com não poucas afirmações notáveis, entre as quais a dificuldade de cindir a existência política dos cidadãos numa parte pública e noutra parte privada e a opinião que o Estado liberal deveria solicitar aos seus cidadãos seculares a não considerarem prejudicialmente, no diálogo cívico, as expressões religiosas como irracionais.
Neste escrito encontram-se afinidades com o diálogo entre o próprio Habermas e o então cardeal Joseph Ratzinger, realizado em Munique da Baviera em 2004.
Na nova intervenção de Habermas está clara a tentativa de se opor ao "derrotismo" da razão moderna e, de outra parte, é também claro o intento de permanecer ligado, sem repensar, a uma razão expressamente pós-metafísica, considerada definitiva para o pensamento secular.
E, com efeito, é explícito o convite para que "a teologia aprenda a se acertar seriamente com o pensamento pós-metafísico" e que o pensamento secular aprenda "seriamente sobre aquela origem comum da filosofia e da religião que remete ao período axial, ou seja, aquela revolução da cosmovisão que aconteceu na metade do primeiro milênio antes de Cristo". Isto será útil à própria razão secular, que entenderá melhor a si mesma, quando entender a fonte comum das duas figuras complementares da razão e da religião.
De tal modo, o autor toma distância "daquele humanismo mentalmente limitado e irreflexivo, que nega todo conteúdo racional à religião" e que ainda parece ser uma posição difusa, reconhecendo pelo menos a força motivadora e estimulante do religioso nos confrontos da consciência da sociedade pós-secular "para tudo o que, das tradições religiosas da humanidade, ainda não foi satisfeito". Distancia-se, assim, de Hegel, para quem a religião é uma figura do espírito subordinada à religião e à filosofia, e para quem, ao olhar do saber, a fé conserva sempre algo de não transparente, de opaco, que não pode ser por nós, nem negado, nem simplesmente aceito". Habermas toma como base o explícito intento de "mobilizar a razão moderna contra o derrotismo que a rói por dentro", constatável tanto na pós-moderna "dialética do iluminismo", quanto no cientificismo positivista.
Assunto certamente habermasiano é de que a razão pós-metafísica pode, por si mesma, contestar tal derrotismo se permanecer no plano teórico, sendo que ela encontra maiores dificuldades na razão prática.
Ora, o pensamento pós-metafísico não raramente - assim também procede Habermas - busca apoio no pensamento religioso, reconstruindo uma genealogia da razão, na qual, num remoto passado, filosofia e religião brotavam de uma fonte comum, apoiados na idéia de que entre elas, um tempo contíguas, poderia hoje reiniciar-se um diálogo. A perspectiva merece ser valorizada, mas o problemático é precisamente o horizonte pós-metafísico que deveria presidir ao novo diálogo, enquanto este adota o método genealógico e não parece disposto a relativizá-lo e submetê-lo à crítica. Em sua essência, a genealogia se alia com um historicismo absoluto e um evolucionismo universal, não parecendo estar em condições de elevar-se ao "Standpunkt" [ponto de vista] especulativo da simples verdade e de assertivas estáveis. A genealogia e/ou a pós-metafísica não parecem capazes de tanto, e a segunda freqüentemente declina a um proceduralismo que tenta justificar fundamentos normativos, mantendo-se aderente ao critério kantiano da autolegislação e da autonomia.
Tal razão pós-metafísica, reconhecendo apressadamente "o monopólio científico da produção de saber mundano", ou seja, reduzindo a autoridade da razão natural aos falíveis resultados das ciências institucionais, afasta como impossível e talvez inútil o conhecimento racional do ser: isto é, manifesta-se, amplamente e com freqüência, totalmente mergulhada no esquecimento do ser, e por isso incapaz de alcançar a onto-sofia, o nível de um conhecimento especulativo-sapiencial da existência. Em sentido fundamental, o esquecimento do ser significa que não se considera mais possível uma ciência do ser enquanto ser. Nenhum argumento de mérito é avançado por Habermas, mas apenas o juízo historicista de que "a ciência moderna constrangeu a razão filosófica, tornada autocrítica, a despedir-se para sempre das totalizantes construções da natureza e da história": isto é um modo claro, em última análise positivista, de sustentar que, seja embora em meio às contingências do falibilismo, somente a ciência conhece.
Nestes aspectos joga-se uma partida decisiva, especialmente para a razão secular: a discordância entre o "partido religioso" e o "partido secular", que tantos lêem hoje como ruptura entre religião e mundo secular, na realidade é, com freqüência, um dissenso interior à própria razão filosófica. Ocorre, por certo, "induzir reflexivamente a consciência religiosa a pôr em confronto as próprias verdades de fé, seja com 'outras' potências de fé concorrentes, seja com o monopólio científico da produção do saber mundano", mas ocorre ainda mais induzir a razão mundana a não se autodestruir, a não capitular com um excesso de facilidade diante da skepsis, a não se autolimitar ao âmbito daquilo que é verificável no experimento. A discrasia que emerge aparece principalmente como diferença entre uma razão metafísica e realista, e uma razão que não tem acesso ao ser e à realidade, a não ser de maneira muito indireta.
Ora, nesta discrasia fundamental, o maior derrotismo não está no âmbito da razão prática, mas no teórico-metafísico. O verdadeiro problema é que a razão pós-metafísica, sendo também ela teoricamente derrotista ou pessimista, não está em condições de enfrentar os dois derrotismos evocados pelo autor: o da declinação pós-moderna da "dialética do iluminismo" e o do cientificismo positivista.
Com freqüência, na origem de tal profundo "philosophical divide" [cisão filosófica] estãoKant e suas teses, o seu modo de conceber o funcionamento da mente na obra do conhecimento. Um funcionamento de todo singular e tal que nem mesmo o intelecto deKant funcionava como ele andava descrevendo na "Crítica da razão pura". Se no além haverá uma casa de saúde ou um hospital para a razão, não é improvável que ali se encontrará a razão pura, que pretende funcionar como se descreve na primeira "Crítica".
Há motivos para se reter que o pensamento pós-metafísico seja particularmente desarmado diante do evolucionismo radical que (contraditoriamente) sustenta um tornar-se originário autofundado e sem objetivo e, com isso, a inexistência de toda essência ou natureza. Em outras palavras, na perspectiva da pós-metafísica não é possível pôr-se em guarda contra a objeção de um evolucionismo radical. A razão teórica aparece numa situação mais precária do que a da prática, contrariamente a quanto sustenta o filósofo alemão. De fato, na razão prática o pivô está em motivar cognitivamente, mas como motivar, se todo horizonte de sentido e de finalidade é impelido por uma razão pós-metafísica que cede ao evolucionismo e à sua ética adaptativa?
O niilismo fundamental nasce em nível teórico e significa que não há nenhuma resposta à pergunta sobre o porquê e sobre o fim. Com excepcional intuição, Nietzsche definiu, de fato, o niilismo do seguinte modo: "niilismo: falta o fim, falta o porquê". Não estão em jogo perguntas que versam sobre a moral, mas, em primeira e fundamental instância questões de sentido, extinto o qual, a alavanca moral dificilmente se mantém por longo tempo. A idéia de que seja possível e mesmo desejável uma ética depurada de toda ontologia e metafísica está hoje muito difundida, mas é frágil. É uma ilusão perigosa.
A virada kantiana para a mera razão prática, em cuja linha se coloca Habermas, que lhe acrescenta uma formulação pessoal em sentido procedural, é uma barreira demasiado frágil, enquanto, carregando integralmente sobre a ética e o direito, abandona não somente a ontologia, mas igualmente a antropologia. A ética sem ontologia é igualmente uma ética sem antropologia, circundada por um relevante silêncio antropológico.
A origem comum da filosofia e da religião, da qual diz Habermas que ela seria mais bem retomada e reconhecida se a razão secular, em vez de afastar de si, como impura, a razão ontológica, novamente a encontrasse, é algo certo no quadro das ciências, mas sem reduzir-se a estas. A tarefa prioritária diz respeito à razão natural, que deve reencontrar o próprio equilíbrio, não se encerrando no empírico e não se autolimitando e, por fim, se autodestruindo com as próprias mãos.
Dentro de tal trajeto, Habermas aborda brevemente o problema da des-helenização, relacionado ao discurso de Bento XVI em Regensburg, "que deu uma prega surpreendentemente antimoderna ao velho debate sobre a helenização ou des-helenização do cristianismo. Com isto, ele deu resposta negativa à pergunta sobre se os teólogos cristãos devam esforçar-se por dar conta dos desafios suscitados por uma razão moderna e, por conseguinte, pós-metafísica". Nesta linha seduz a reflexão, mais do que a hermenêutica do discurso de Regensburg, a esperança colocada por Habermas na razão pós-metafísica que aparece como demasiado distante, a não ser que esta razão - ainda antes de encetar o diálogo com as religiões - empreenda a caminhada de dialogar consigo mesma, sem excluir aprioristicamente o nível da razão especulativa e metafísica.
Há bastantes anos, uma ala consistente do pensamento pós-metafísico usa a locução de "pensamento débil", ao qual corresponderia o "pensamento forte". Trata-se de metáforas que somente em parte atingem a questão e que acabam por desorientar, mais do que ajudar a compreender. O termo "pensamento pós-metafísico" diz com maior clareza o caráter da debilidade, enquanto, em lugar da fortidão, eu empregaria a fórmula "pensamento aberto e humilde", humilde no sentido de que não presume conhecer tudo, mas se põe à escuta da realidade, não excluindo a priori que nesta fale uma revelação divina.
É difícil dizer se o pensamento secular estaria definitivamente direcionado para a linha da pós-metafísica. Seja o que for, é preciso sempre e de novo convidar a razão a radiografar-se e a estabelecer, sem demasiados impactos, os seus poderes, enquanto, de fato, a pós-metafísica parece haver decidido não se submeter a exames radiológicos e considera muito reduzidas as suas forças, reconduzidas ao âmbito do empírico das ciências. Não está dito que andem de acordo com a pós-metafísica e o pensamento pós-secular, que Habermas gostaria de correlacionar. Pode, por certo, existir uma sociedade pós-secular, na qual não valha o dito fácil segundo o qual "a mais modernidade corresponde menos religião", mas, a rigor, não pode existir uma razão pós-metafísica que, no entanto, transcure demasiados núcleos de realidade. Com efeito, a linha da pós-metafísica, restringindo o exercício da razão aos elementos das ciências positivas e à filosofia positivista, pensa haver salvaguardado certa universalidade. Mas, seriam as ciências a única forma de universalidade à nossa disposição? Pensá-lo empobrece gravemente o ser humano: é que existe uma universalidade do humano que é transcultural e sem a qual o diálogo decola com dificuldade e rapidamente se extingue.
Em substância, o novo pacto entre fé e razão, do qual se reconhece a necessidade, não poderá ocorrer de maneira satisfatória, se ele for colocado no sulco de uma des-helenização ulterior que conduza ao derrotismo [ou desânimo] da razão e rebata os elementos centrais da perspectiva pós-metafísica. Poderá ocorrer, no entanto, se ele reconhecer a capacidade autêntica da "razão natural" mesmo além do âmbito fundamental das ciências.
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