Entrevista com Edgar Morin - Parte II



O que é a complexidade? A busca do complexo não deveria ser sempre o objetivo (assim como um método de pesquisa) de toda ciência?
Edgar Morin – O problema não é a busca, mas a necessidade de responder ao desafio da complexidade. Em contrapartida, eu diria que o pensamento complexo tira sentido da palavra latina complexus : tecido junto. Trata-se do pensamento que liga os conhecimentos separados. Por que ligar? Porque o conhecimento só é pertinente quando situado no seu contexto e na globalidade. Ligar, contextualizar e globalizar fazem parte da necessidade natural do conhecimento.
Para saber ligar, entretanto, é preciso utilizar instrumentos de pensamento estranhos aos procedimentos científicos clássicos, que obedecem à causalidade linear simples, a uma lógica rígida e que obedecem sobretudo ao princípio de separabilidade. O homem, por exemplo, que é ao mesmo tempo um ser físico, químico, cerebral, mental, espiritual, social e cultural, é estudado de maneira fragmentada: a física, a química, a biologia, o cérebro, o espírito, a cultura e a sociedade, a psicologia, etc. Ora, em realidade essa separação não nos permite de compreender a complexidade humana.
O pensamento complexo reage contra essa situação, sem ser, contudo, apenas o contrário do pensamento simples, e integra os modos de pensar simples e complexos numa concepção mais rica. Trata-se da « dialógica » do simples e do complexo, do separável e do não-separável, da ordem e da desordem, da « dialógica » entre a lógica clássica e a transgressão logica quando esta se impõe, ou antes entre a lógica clássica e a racionalidade aberta. Não se pode, portanto, aprender o pensamento complexo, sobretudo quando se tem a formação de um sistema reducionista, em um dia. A complexidade exige um novo e difícil aprendizado e a reforma do pensamento, a qual demanda a reforma da educação.
A propósito justamente da mudança de pensamento que o senhor propõe contra o reducionismo, as simplificações e o conformismo: em que consiste essa reforma e como iniciá-la?
Edgar Morin – a reforma consiste no aprendizado que já citei e ela é vital na atualidade porque vivemos numa época em que os problemas estão cada vez mais ligados uns aos outros. Não se pode encerrá-los numa nação, e os maiores desafios de vida ou morte são planetários. Existem dois tipos de pensamento fechados: há o isolamento nacionalista, religioso ou étnico, que só deseja ver o fragmento de humanidade por ele representado, ignorando o resto.
Há também o fechamento próprio à tecnocracia, que só vê as dimensões quantitativas, econômicas, e esquece as outras facetas humanas. Como estamos no reino do pensamento mutilante ou fragmentário, a necessidade de contextualizar os problemas é de fato vital. De que forma? Todas as reformas começam marginalmente na medida em que existe uma contradição: como reformar os espíritos sem reformar antes o ensino e por conseqüência as instituições? Mas como reformar as instituições sem reformar antes os espíritos?
É um círculo vicioso. As grandes reformas começam sempre pela tomada de decisão em algum lugar de criar uma nova instituição, nova experiência, na escola primária, secundária ou na universidade. Se a experiência mostra-se fecunda, pode generalizar-se. A universidade, por exemplo, foi teológica praticamente até o fim do século XVIII. A primeira universidade moderna, fundada sobre disciplinas, surgiu em Berlim no início do século XIX, num Estado periférico que era a Prússia; depois, esse modelo expandiu-se. Hoje, é preciso inventar um novo modelo e, como as necessidades da época exigem outro modo de pensar, ele terá chances de impor-se.
O mesmo vale para a escola primária: seria preciso começar por uma reforma de ensino que partisse das questões fundamentais – quem somos?, de onde viemos?, para onde vamos? – e então ligar os conhecimentos de diferentens disciplinas. Vejo a possibilidade da reforma, mas toda evolução inicia por um desvio, por alguma coisa não-ortodoxa e minoritária. É inevitável.
Qual é para o senhor o lugar da incerteza nas relações entre ordem, desordem e organização dos fenômenos naturais e sociais?
Edgar Morin – Devemos compreender que não somente no plano filosófico, mas também no científico, não existe certeza teórica absoluta. Temos certezas sobre fatos, por exemplo, que tem sol quando tem sol, ou que o sol aparecerá a tal hora amanhã e a tal hora depois de amanhã; assim, talvez, por algum tempo. Essas certezas estão situadas no tempo e no espaço e são biodegradáveis, pois a Terra não girou sempre com a mesma velocidade em torno do sol e em torno dela mesma. Houve um momento em que a Terra não existia; haverá um momento em que o sol explodirá. Nossas certezas, portanto, não são eternas.
Nenhuma teoria científica, e aí reside, creio, a importância da contribuição de Karl Popper, está segura de ter certeza absoluta. Aquela que num instante específico conforma-se mais aos dados em questão impõe-se. Mas pode muito bem ser substituída por nova teoria, e a prova é que praticamente todas as teorias científicas do século XIX foram ultrapassadas no século XX ou provincializadas.
Uma teoria é uma construção do espírito e, de resto, sabemos que o conhecimento não é o espelho da realidade, mas tradução e reconstrução de um mundo do qual recebemos mensagens através de nossos sentidos, como os olhos, que são traduzidas e codificadas por nosso sistema nervoso e retrabalhadas pelo cérebro que faz delas uma percepção. Se todo conhecimento é  reconstrução e percepção, não pode ter valor de reflexo absoluto do real. Somos, portanto, obrigados a negociar com a incerteza.
De outra parte, tivemos de abandonar, felizmente, a idéia de que o universo era uma máquina determinista perfeita, pois quando se tem tal máquina pode-se prever o futuro. Laplace imaginava que um demônio poderia conhecer todos os acontecimentos do futuro e do passado. Na realidade, estamos num universo que comporta desde o princípio o  imprevisível. Desde o começo, existe calor, e o que é o calor? Agitação de partículas ou de moléculas cujos momentos particulares não podemos prever. Somente com sistemas fechados é possível estabelecer leis estatísticas gerais.
A história de nosso universo sempre comportou a incerteza: colisões de partículas ou de galáxias, logo com destruições mútuas, bifurcações, riscos, etc. Quando se olha a história da Terra, vê-se que ela não foi linear; houve acidentes, cataclismas ecológicos como os que provocaram o desaparecimento dos dinossauros. Penso que vivemos num mundo de mistura de ordem e de desordem – sendo ordem tudo que diz respeito ao determinismo, à estabilidade, à regularidade, e desordem tudo o que é colisão, agitação, destruição, explosão, irregularidade. Devemos desenvolver estratégias de ação face a tal universo.
No Método , o senhor subscreve a crítica de Karl Popper à indução, mas, em contrapartida, indica que é preciso ir mais longe do que ele quanto à dedução. O trabalho do epistemólogo austríaco ficou incompleto?
Edgar Morin – Disse que apesar da indução ser um instrumento fecundo de conhecimento, ela não dá a certeza absoluta, o que havia constatado também Popper. Mas seria possível crer, porém, que a dedução poderia oferecer essa certeza absoluta. É aí que podem ocorrer as derrapagens dedutivas como se sabe desde o aforisma do cretense, segundo o qual todos os cretenses mentem, isto é, quando dizem a verdade, mentem… Logo, a incerteza.
Depois de todos os teoremas da incompletude que colocam a incerteza nos domínios mais sofisticados da dedução, da lógica matemática, sabemos que a dedução entregue a si mesma encontra os seus limites. Temos uma lógica clássica que é indutiva, dedutiva e identitária. Não podemos confiar totalmente na indução, de outra maneira tampouco na dedução e quanto ao princípio de identidade, ou do terceiro excluído, desembocamos racionalmente em contradições que é preciso assumir.
O seu pensamento, acabamos de ver, é aberto à pluralidade. A mestiçagem, em todos os sentidos do termo, e o sincretismo devem desempenhar papel importante na maneira de olhar e de « ler » os fatos sociais?
Edgar Morin – Temos um duplo imperatifo contraditório e é isso, no fundo, a necessidade complexa. De um lado, estamos num mundo onde processos de homogeneização tentam destruir as culturas; tudo que vem da técnica, da indústria, etc. atenta contra as culturas e sobretudo quando estas são fundadas sobre pequenas comunidades como os índios da Amazônia. O primeiro imperativo é a preservação, mas não de forma artificial, de todas as culturas que refletem a diversidade das possibilidades humanas.
Ao mesmo tempo, devemos favorecer a mestiçagem porque ela é produtora de diversidade. Quando refletimos sobre nossas culturas, percebemos maior unidade nas que foram constituídas a partir de contribuições históricas muito diferentes. Exemplo: o flamenco, de extraordinária autenticidade, só existe porque os gitanos integraram elementos vindos da Índia, dos árabes, dos judeus, dos ibéricos, etc. Todas as grandes culturas foram o produto de encontros e de sínteses.
A mestiçagem cria novas sínteses. Nas grandes cidades, nas capitais, pessoas oriundas de províncias encontram-se, casam-se e geram nova « espécie ». O parisiense é uma « espécie » diferente. Vivemos numa época onde as necessidades de comunicação entre os homens fazem que o mestiço seja, em geral, o melhor comunicador entre as diferentes civilizações e culturas.
Diz-se que o Ocidente atravessa a época das sociedades pós-utópicas e que é preciso abandonar a idéia da construção do melhor dos mundos. O senhor, contudo, crê na possibilidade de edificar um mundo melhor. As populações dos países pobres sonham com isso. Pode-se ainda investir, complexificando as abordagens política e sociológica; numa nova forma de solidariedade?
Edgar Morin – É a minha esperança, embora eu não tenha nenhuma certeza. Como já disse, é preciso abandonar a utopia do melhor dos mundos – a utopia louca de um universo de onde seria banida a infelicidade, a solidão, a desordem, o conflito – e não creio que possamos nos passar da diversidade e por conseqüência do conflito, pois idéias diversas podem opor-se. A aspiração a um mundo melhor resta possível porque existem possibilidades humanas subdesenvolvidas.
O ser humano é potencialmente capaz do pior e do melhor. Há nele um monstro possível, um sádico, um bruto, um assassino e também um herói, um santo, alguém que necessita dedicar-se aos outros. Todo mundo tem maior ou menor pulsão altruísta. O que é uma boa civilização? A que permita o pleno emprego das melhores pulsões humanas, da solidariedade; a má sociedade inibe essas pulsões em favor da agressividade e do egocentrismo.
Nada há de louco em esperar um mundo no qual seríamos menos inumanos, menos cruéis, menos atrozes e onde existiria menos pobreza ou talvez nenhuma, pois temos condições técnicas para suprimir a fome e não o fazemos por causa de dogmas econômicos. Outro mundo é possível. A humanidade passou por estágios e o novo era impensável a partir do antigo. As sociedades de caçadores e coletores, dez mil anos antes da nossa era, não possuíam Estado, nem cidades, nem instituições, nem exércitos, nem agricultura; não se podia imaginar que um dia surgiria uma sociedade com agricultura, com Estado, etc.
A sociedade histórica é de fato inimaginável a partir das primitivas. Ora, hoje, uma sorte de sociedade nova, federação livre, planetária, é impensável desde os Estados nacionais onipotentes. Não se vê como ultrapassá-los sem suprimi-los. A esperança para mim é a outra face da resistência. Resisti à barbárie, ao nazismo, ao comunismo stalinista e, agora, resisto à barbárie que toma a forma do fanatismo, da purificação étnica, da guerra e do massacre. Resisto à barbárie que nasce do nosso mundo tecnocientífico e industrial. Sem essa resistência não haveria esperança.
Qual a sua reação diante das críticas de certos intelectuais ao isolamento, à ausência de comunicação e ao fechamento étnico que se esconderia sob a cobertura da diversidade?
Edgar Morin – Até o presente, a diversidade humana, desde o homo sapiens , desenvolveu-se no mundo cada sociedade ignorando as outras. Não havia comunicação e somente na era planetária os grupos humanos foram levados a comunicar. Existem dois modos de comunicação: o mais bárbaro é a guerra, o fechamento, a ignorância do outro; o modo civilizado é a compreensão e a troca. Evidente, a diversidade humana permite esse fechamento, mas pode-se ter também uma homogeneização que seja extremamente bárbara na medida em que todos pensariam da mesma maneira e haveria menos criatividade.
A crise do mito prometéico da modernidade e do progresso infito semeou a dúvida a propósito dos benefícios da ciência. É preciso redefinir também o papel do científico no mundo contemporâneo? Haveria o perigo de perder-se a compreensão da globalidade em função das especializações cegas num época, paradoxalmente, de « planetarização » econômica e cultural?
Edgar Morin – Claro, porque a tragédia é que os cientistas têm um modelo de pensar preso à especialização e, evidentemente, diante dos problemas políticos, sociais e sobretudo planetários, estão desarmados ou só possuem idéias simplistas, falsas. Além disso, os cientistas, notadamente nas ciências físicas, crêem-se proprietários da racionalidade porque controlam bem todos os processos em laboratório; mas a vida social não é um laboratório. Eis a razão pela qual existem tantos detentores do Nobel que tiveram as idéias mais pueris sobre a sociedade e o político. Quantos socialistas engoliram as besteiras contadas a propósito de Stalin!
A cientificidade não é uma garantia de lucidez em matéria de política, com freqüência dá-se o contrário. Há um problema de consciência científica, mas sabe-se o quanto é difícil para os cientistas – formados desde o início do século com a pretensão de serem os proprietários da razão, da verdade e os espíritos mais avançados – perceberem a própria cegueira. Por vezes, acontecem sobressaltos de furor como no Manifesto de Heidelberg, onde os grandes nomes da ciência recusaram mesmo a consideração do problema ecológico.
Urge, portanto, acionar a reforma do pensamento científico?
Edgar Morin – Precisaria, mas aí também as tentativas são difíceis. Em contrapartida, existem ciências novas, sistêmicas, que reagrupam disciplinas: a ecologia reúne as competências da geografia, da biologia, da zoologia, da botânica, etc. O ecólogo estuda as organizações espontâneas chamadas ecossistemas e, hoje, a biosfera, ou seja, não somente o conjunto da vida, mas inclusive as atividades humanas que transformam essa biosfera.
Eis uma verdadeira ciência que faz a ponte entre o global e o local, entre os conhecimentos particulares e e o conhecimento geral, pois um conhecimento somente geral é vazio. O mesmo vale para as ciências da Terra. A partir do momento em que se considerou a Terra como um sistema complexo, em autodesenvolvimento, pôde-se compreender e fazer comunicar a sismologia, a vulcanologia, a geologia, etc. Ao invés de disciplinas compartimentadas e incomunicáveis, é preciso ter outras que possam considerar os problemas da vida como um todo complexo, os problemas do ser humano como um todo complexo. A reforma da ciência, portanto, deve vir do desenvolvimento das próprias ciências.
O senhor, por sinal, é um crítico do « cretinismo intelectual » e do racionalismo simplificador. Deve-se aceitar o não-racional, o mistério, por exemplo, no campo da ciência?
Edgar Morin – Oponho, em primeiro lugar, racionalidade e racionalização. A racionalidade é sempre aberta e autocrítica; a racionalização, sistema perfeitamente lógico, tem bases estreitas e sempre fechadas. As ciências, quanto mais avançam, mais aproximam-se das questões misteriosas, que ultrapassam o espírito humano. Por exemplo, a origem do universo: como conceber que o espaço, o tempo, a matéria sejam provenientes do não-tempo, do não-espaço e da não-matéria?
Os microfísicos tinham visto que a mesma partícula podia comportar-se, contraditoriamente, como onda ou corpúsculo. Mais se avança no conhecimento e mais se descobre a ignorância fundamental. A diferença é que antes estávamos numa ignorância que ignorava a si mesma, espécie de certeza ingênua; o progresso das ciências mostra que o conhecimento nos abre para os grandes problemas do universo que são, talvez, ininteligíveis para o espírito humano.
De toda maneira, até o presente, o progresso da cosmologia e da astrologia colocaram-nos diante diante de um fosso de ignorância a propósito da origem do universo; o progresso da biologia põe-nos face ao mistério do nascimento da vida: acaso extraordinário? Outro mistério é o da complexidade da organização da menor bactéria ou do nosso próprio corpo, composto por cem bilhões de células. O progresso do conhecimento conduz-nos, portanto, na direção do caráter enigmático e mistério do universo.
A teoria do « big-bang », diga-se de passagem, não lhe parece a resposta final à questão da origem.
Edgar Morin – O « big-bang » é controvertido enquanto « big-bang ». Muitos fisícos pensam que possivelmente uma espécie de espedaçamento do vazio inicial produziu uma expansão e uma propagação de energia extraordinárias. A isso se chamaria « big-bang ». Em todo caso, não é uma resposta. O « big-bang » representa a chegada a um grau limite de conhecimento. Houve, no começo, uma propagação energética e dissou resultou ou não uma explosão. Existe algo de inconcebível e o conhecimento progredirá ainda nesse campo, mas não fornecerá a chave para compreender claramente os mistérios do do universo.
A racionalidade é a forma mais elevada de conhecimento do monde empírico por comportar procedimentos de argumentação, de verificação, de crítica e de autocrítica, em oposição aos argumentos de autoridade. Mas ela não englobará todo o universo, pois existem fenômenos a-racionais, infra-racionais, extra-racionais, etc. A racionalidade nos permite de dialogar com o desconhecido, sem ter resposta para tudo.
O senhor estudou um aspecto fundamental do universo cinematográfico: as estrelas. Trata-se de um exemplo do seu interesse pela imagem, pelos meios de comunicação de massa e por maneiras particulares de estabelecimento de laços sociais. A imagem tornou-se um poder ou é o poder que burila as imagens para impor-se?
Edgar Morin – Trata-se de um circularidade causal. Um poder produz imagens que produzem um poder. Sempre considerei que havia uma realidade imaginária. A tese de meu livro O Cinema e o Homem Imaginário consiste em dizer que a realidade humana é subimaginária, não existindo realidade sem imaginário. Interessei-me pelo cinema por causa do imaginário, do mito, no centro de nossas sociedades consideradas racionalizadas e tipicamente planas. Nunca estudei a imagem enquanto imagem. Vivemos cercados de imagens; nós as produzimos e elas nos produzem.
O centenário do cinema incita-o a retomar esse tipo de reflexão?
Edgar Morin – Estou contente neste ano de comemoração dos cem anos do cinema porque na Itália um editor publicará meu livro sobre as estrelas. Isso me faz refletir sobre essa história fabulosa que eu havia abordado no Cinema e o Homem Imaginário ou como uma máquina criada para reproduzir o real foi apropriada pela ficção e pelo mito. O cinema é uma arte maravilhosa e que só encontra equivalente na ópera, pois atua em todos os registros: imagem, palavra, música, rostos, etc. É a arte mais sublime do século XX. Um romance medíocre é ilegível; um filme medíocre pode ser salvo por alguns rostos ou imagens. Sou fanático por cinema. Conhece-se países distantes graças aos filmes. Uma das grandes invenções humanas.
Em seu Diário 1994 aparecem gostos pouco ortodoxos. A confissão não o assusta?
Edgar Morin – Criticaram-me por achar engraçadas certas brincadeiras de Les Grosses Têtes , programa de televisão desprezado. Mas, por vezes, ouço coisas que fazem rir e não me envergonho de meu riso. Digo em Meus Demônios que cresci na cultura popular, infância de rua, em cinemas de bairro, folhetins, e não esqueci nada disso. Resta em mim um lado infantil muito forte.
Chegou-se ao tempo da realidade virtual. o real nunca lhe pareceu muito sólido e a análise da crise de fundamentos da Verdade levou-o ainda mais nessa direção. Está-se agora mais próximo da complexidade?
Edgar Morin – É uma nova aventura porque já quando se está no cinema, damos vida e alma a personagens que não passam de jogos de sombra. Damos-lhes carne, choramos, rimos, mas continuamos, de qualquer maneira, em nossa cadeira. Com a realidade virtual acontecerá outro salto, pois seremos capazes, sobretudo com captores sensoriais, de fazer virtualmente amor com um ser virtual. Poderemos provar sensações físicas supreendentes.
A questão é saber se iremos nos afogar nessa virtualidade e abandonar nossa realidade prosaica ou se, ao contrário, exploraremos a realidade virtual como o fazemos com o imaginário e o mito. Eu adoraria tentar rapidamente algumas experiências virtuais.
As filosofias políticas dominantes ao longo do século XX valorizaram o futuro, que esteve presente também em sua reflexão, sem, em contrapartida, o desprezo do presente. O tempo é uma categoria fundamental em sua reflexão?
Edgar Morin – O tempo sempre foi uma categoria fundamental em meu trabalho. Quando estudo algo, quero situar-me no tempo e na história. A formação histórica é um elemento capital em minha cultura e sou contra todas as sociologias abstratas, estimuladores de estratificações, que só existem num tempo achatado. O tempo é um fator de transformação, de matamorfose, de morte, de vida, de renascimento, e creio que estamos condenados a pensar nossa condição tomando-se em consideração.
Agora, é certo que o Ocidente gerou um tempo unidirecional, ascendente, voltado para o futuro; uma maneira laica de providencialismo; enquanto no providencialismo de Teilhard de Chardin o mundo dirigia-se para o ponto « mega », no mundo laico caminhava-se para a melhor das sociedades, para o reino da razão, etc. Dito de outra maneira, marchávamos para um futuro telecomandado, o devenir radioso, conforme a expressão utilizada na União Soviética. Ora, esse futuro desabou, inexiste um amanhã predeterminado e nem uma evolução ascensional. O futuro é incerto.

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