Nietzsche e o problema da civilização
Patrick Wotling |
**João Neto
Com o livro Nietzsche
et le problème de la civilisation (1995), o pesquisador francês
Patrick Wotling conseguiu estabelecer um marco na história recente dos estudos
sobre a filosofia nietzschiana. E foi para lançar a tradução brasileira desse
trabalho (Nietzsche e o problema da civilização, GEN/Barcarola, tradução
de Vinicius de Andrade) que ele esteve no Brasil neste mês de novembro. Nesta
visita, Wotling também participou do XXXI Encontros Nietzsche, que
aconteceram em Recife e em São Paulo (no final do mês). Além de pesquisador,
Patrick Wotling é professor da Université de Reims (França), tradutor de
Nietzsche para o francês e um dos fundadores do GIRN (Groupe International
de Recherches sur Nietzsche - Grupo Internacional de Pesquisas sobre
Nietzsche), considerado internacionalmente o mais importante grupo de pesquisas
acerca da filosofia nietzschiana. Antes de vir ao Brasil, Wotling concedeu,
pessoalmente, em Paris, esta entrevista à Filosofia Ciência e Vida.
Além de responder a algumas questões teóricas relacionadas a seu livro, o
professor falou sobre a história da recepção de Nietzsche na França, sobre o
atual estado da pesquisa internacional da filosofia nietzschiana e da
importância do GIRN. Falou também um pouco da tradição - e da presente situação
- do ensino de Filosofia na França.
FILOSOFIA A tradução do seu livro, Nietzsche et le problème de la civilisation (Nietzsche e o problema da civilização), está pronta para ser lançada no Brasil. Na França, o texto original foi publicado em 1995. Desde então, o senhor continuou se dedicando à pesquisa da filosofia de Nietzsche. Esses 15 anos de estudos levaram-no a modificar alguma coisa em suas interpretações?
Patrick Wotling Primeiramente, gostaria de
dizer que estou feliz e muito agradecido aos colegas brasileiros por terem
viabilizado a publicação desse trabalho. Esse livro foi fruto da minha primeira
grande pesquisa sobre Nietzsche que, no meu entender, teve um caráter pioneiro.
Isso porque trouxe como resultado a reparação de lacunas e de incompreensões
que estavam, até então, presentes nas leituras da obra nietzschiana. Ao me
confrontar com os textos do autor e com a fortuna crítica - sobretudo, da França
e da Europa -, me dei conta que existiam pontos significativos e estruturais do
pensamento do filósofo que não haviam sido trabalhados pelos comentadores.
Isso, sobretudo, no que concerne a uma questão fundamental: a proposta
nietzschiana de transformação do homem - o que Nietzsche chama de
"cultivo" do homem ["cultivo" é a tradução para o termo
alemão züchtung]. Para dar conta dessa lacuna, tive de remontar, a
partir do zero, a organização do questionamento nietzschiano. Compreender sua
lógica, sua estrutura e tentar, a partir disso, entender qual é a significação
das respostas que o filósofo deu a essa questão. Com essa pesquisa, posso dizer
que minha hipótese de trabalho me pareceu confirmada por um certo número de
resultados. Nesse sentido, eu diria que não modificaria, em nada, o
posicionamento central do livro. Evidentemente que em 15 anos de estudos muitas
coisas foram buriladas e desenvolvidas. Entretanto, se proponho algumas
hipóteses novas, essas dizem respeito a desenvolvimentos e prolongamentos que
partem da mesma base teórica. Enfim, no que diz respeito às teses centrais,
mantenho tudo o que sustentava naquela época.
A filosofia nietzschiana está
inserida em um processo de inversão lógica que se desenvolveu, na Europa, no
século XIX
FILOSOFIA
No seu livro, você defende a tese de
que, na filosofia de Nietzsche, há um movimento circular em que as
interpretações culturais são derivadas do corpo e que, ao mesmo tempo, essas
interpretações têm o poder de modificar esse mesmo corpo. Nesse caso, quem tem
a prioridade "ontológica"? O corpo ou a interpretação cultural?
Patrick Wotling Essa é uma questão muito
complexa, mas também muito reveladora. O que tentei mostrar durante minha
pesquisa é que Nietzsche revoluciona o modo de pensar. Ele mostra que a maneira
habitual através da qual colocamos os problemas não é satisfatória, pois é parcial
e incompleta. Nietzsche mostra, por exemplo, que não existe uma causalidade
linear no sentido clássico - do tipo causa e efeito - e, por essa razão, não
poderíamos responder à sua pergunta numa única direção. Ou seja, ao negarmos a
causalidade linear, não poderíamos dizer que a prioridade causal é do corpo ou
da cultura. Nietzsche coloca em xeque nossa lógica ordinária, pois, para ele, a
realidade seria um jogo de "vai e vem" entre o corpo e a Cultura.
Para dar um exemplo dessa maneira de pensar, poderíamos voltar a uma questão
que já havia sido levantada pelo meu colega Eric Blondel, a saber: "foi o
corpo doente que engendrou o cristianismo ou é o cristianismo que torna o corpo
doente?" No meu entender, a resposta de Nietzsche seria a seguinte:
"são os dois movimentos ao mesmo tempo". Há uma reversibilidade.
Por um lado, podemos dizer que um certo tipo de corpo possui uma necessidade de
consolação e crença em um outro mundo. Essa necessidade de consolo exige,
então, uma reorganização do mundo sensível a partir das respostas que são
dadas, por exemplo, pelo cristianismo. Por outro lado, o fato de acreditar
nessas respostas - ou seja, a condenação do sensível e a existência de um mundo
de justiça suprassensível e transcendente - e de tomá-las como regras para
conduzir a vida vai provocar a modificação do corpo. Enfim, a realidade, para
Nietzsche, é uma interação permanente entre corpo e Cultura que, através desse
jogo, produz a si mesma.
FILOSOFIA Levando isso em conta, Nietzsche não cairia numa espécie
de jogo dialético, em que "corpo" e "interpretação
cultural" constituiriam pólos?
Patrick Wotling A filosofia
nietzschiana está inserida em um processo de inversão lógica que se
desenvolveu, na Europa, no século XIX. Por exemplo, essa ideia de que era
preciso ultrapassar a descrição do mundo em termos de causalidade era uma
tendência bastante corrente nesse período. Evidentemente, Nietzsche representou
uma inversão particular no interior dessa tendência. A particularidade de
Nietzsche - que faz toda a diferença em relação a toda corrente dialética - é
que os elementos que são colocados em jogo não são nunca pensados como
objetivos, mas como sendo, desde sempre, interpretações. É por essa razão que
ele compara a existência a um sonho. Um tipo de sonho muito bem organizado, do
qual não há meio de sair e no qual, também, não há meio de encontrar um
fundamento estável, um ponto de referência objetivo. Enfim, podemos dizer que a
filosofia nietzschiana revela relações e aproximações estruturais, por exemplo,
com o materialismo dialético. Contudo existe essa diferença fundamental: em
Nietzsche não há referência à objetividade. Tudo a que temos acesso é sempre resultado
de uma interpretação.
FILOSOFIA
Ao que tudo indica, você não está de acordo com a
interpretação cosmológica da filosofia nietzschiana. No seu livro, foi
apontada, por exemplo, a necessidade de compreender a doutrina do eterno
retorno do mesmo a partir de um ponto de vista hierárquico, em que a cosmologia
estaria subordinada à questão dos valores. Entretanto, pensar o corpo - este
entendido como multiplicidade de afetos, vontades de potência, forças cósmicas
etc. - como fio condutor para o filosofar não seria partir de um ponto de vista
cosmológico?
Patrick Wotling Eu respondo desde já: não. Não
estou de acordo com a interpretação cosmológica da filosofia de Nietzsche. Isso
porque ele tem textos bastante claros a esse respeito. Como falei, Nietzsche
faz desaparecer toda referência à objetividade. Se ele diz, e repete, que é
preciso tomar o corpo como fio condutor, também acrescenta que não podemos
esquecer que não temos conhecimento objetivo acerca do corpo. Nossa relação com
o corpo é, desde sempre, interpretativa. O que podemos perceber de maneira
reflexiva através do corpo já é uma triagem, uma escolha, uma reorganização na
massa enorme de processos complexos que organiza a vida do organismo. Somos
seres vivos que percebemos o mundo a partir de nossas necessidades e não
espíritos absolutos. Nesse sentido, se nunca podemos fugir dessa relação
interpretativa, a objetividade em geral se torna inviável. Portanto, de maneira
particular, a cosmologia também perderia o sentido - isso se a cosmologia for
entendida como o conhecimento da estrutura do mundo ou da realidade. E essa é a
razão que me leva a sustentar, firmemente, que a tentativa de leitura
cosmológica da filosofia nietzschiana não é defensável. Para que ela fosse
defensável, seria necessário conservar as noções de verdade e de conhecimento
objetivo. Essas são as primeiras noções que desaparecem em Nietzsche.
Para
Nietzsche, as interpretações das filosofias clássicas não levam em conta toda
uma série de elementos da realidade. Por não aceitar, por exemplo, o caráter
imoral desses elementos
FILOSOFIA Eu penso, aqui, na relação entre a
noção de vontade de potência e o perspectivismo. No meu entender, teríamos duas
alternativas: 1) pensar o perspectivismo a partir da vontade de potência e
dizer que o perspectivismo está, nesse sentido, "enraizado" na cosmologia.
Ou, pelo contrário, 2) poderíamos dizer que a vontade de potência é uma
interpretação perspectivista. Nesse último caso, por que deveríamos escolher a
interpretação de Nietzsche em detrimento das outras?
Patrick Wotling Nietzsche afirma,
claramente, que a vontade de potência é uma interpretação e não um princípio
objetivo. Contudo, poderíamos perguntar: o que faz então a diferença entre esta
interpretação e as outras? E, aqui, podemos lembrar que Nietzsche acusa os
filósofos e os cientistas de criarem más interpretações. O que faria, então, a
diferença entre a boa e a má interpretação? Para responder essa questão,
Nietzsche oferece como modelo a Filologia - que é o modelo da leitura e
tradução de textos. Primeiramente, isso quer dizer que uma boa interpretação é
aquela que, antes de tudo, tem consciência de que ela é uma interpretação. Em
seguida, essa interpretação deve ser honesta - quer dizer, escrupulosa
intelectualmente - e se esforçar para levar em conta, sem fazer triagens e
escolhas, o conjunto dos elementos da realidade aos quais ela tem acesso. Aqui,
a desonestidade é um pouco equivalente a uma tradução que optaria por não
traduzir certas frases ou certas sequências do texto original. Seja porque elas
são muito difíceis, muito obscuras, ou porque elas vão de encontro ao que o
tradutor gostaria de estabelecer. Portanto, a diferença fundamental entre a
hipótese da vontade de potência e as outras interpretações reside na questão da
honestidade intelectual. Para Nietzsche, as interpretações das filosofias
clássicas não levam em conta toda uma série de elementos da realidade. Por não
aceitar, por exemplo, o caráter imoral de certos elementos expressos pela
realidade, concepções como o platonismo e o cristianismo adotam uma visão
moralizante e ascética da realidade. Mas, justamente ao adotar valores desse
tipo, o platonismo e o cristianismo provocam, muito frequentemente, uma
distorção da percepção. Essas perspectivas poderiam ser entendidas como uma
espécie de óculos defeituosos. Mas, para responder sua questão: sim, a vontade
de potência é uma interpretação. E Nietzsche não quis dizer que é a única e nem
que é a melhor. A esse respeito, há textos engraçados em que ele coloca em cena
um diálogo entre ele e seus adversários. Depois de escutar Nietzsche falar
sobre a vontade de potência, um adversário lhe diz: "sim, mas isso que
você faz também é uma interpretação" e a resposta de Nietzsche é:
"sim, é uma interpretação, mas tente fazer melhor. Tente encontrar uma
interpretação melhor do que a minha". Portanto, a Filosofia, em Nietzsche,
se pratica de maneira muito pragmática. Não se trata de um debate teórico, se
trata de tentar construir uma interpretação capaz de resistir ao teste da
realidade. Trata-se de submeter essa interpretação à crítica e, eventualmente,
à refutação dessa realidade.
FILOSOFIA Por outro lado, também não poderíamos dizer que, em
Nietzsche, a afirmação da vida terrena seria um critério para julgar essas
diferentes interpretações? E, nesse caso, a referência não seria mais o valor
verdade, mas o valor de afirmação da vida. Por exemplo, por que escolher a
doutrina do eterno retorno do mesmo em detrimento da concepção linear da
cosmovisão cristã? Essa escolha não teria como referência o valor de afirmação da
vida?
Patrick Wotling Sim, você tem razão. O único
problema é o termo "cosmologia". O que me preocupa nesse termo é que
ele está associado a uma tradição filosófica que fez dele uma doutrina
científica, ou melhor, uma vontade científica de elucidação da estrutura da
realidade. É bem verdade que Nietzsche também tenta elucidar a estrutura da
realidade, mas não em termos de verdade e, sim, em termos de interpretação. E
essa distinção é de extrema relevância, pois mostrar que o homem é um ser vivo
que interpreta, e não um espírito puro para o qual o mundo sensível seria
acessível - como alguns filósofos têm a tendência de entendê-lo. Como um
organismo vivo, a qualidade da interpretação vai estar atrelada às exigências
da vida em geral. Pensemos em Platão - que também tem de ser considerado como
um organismo vivo. Ele é um organismo que instituiu valores através dos quais
conseguiu negar a vida. É por isso que Nietzsche afirma que, em Platão, a vida
se coloca contra ela mesma.
FILOSOFIA Você pode falar uma pouco sobre a recepção da
filosofia de Nietzsche na França ?
Patrick Wotling A recepção de Nietzsche na
França possui uma longa e interessante história, pois ela passou por algumas
mutações extremamente importantes. Antes dos anos 1960, o pensamento
nietzschiano interessava, sobretudo, aos artistas e aos escritores. Foi então a
partir dessa década que ocorreu a verdadeira introdução de Nietzsche - enquanto
filósofo - no país. Essa mutação foi fruto das leituras realizadas por figuras
emblemáticas da intelectualidade francesa. Num primeiro momento, tivemos as
interpretações de Deleuze e Foucault e, mais tarde, de Derrida e de alguns
outros. Durante muito tempo - por exemplo, até a época de meus estudos -
tivemos esses intérpretes como referência. Era através deles - sobretudo
através de Deleuze - que líamos e entendíamos Nietzsche. Ora, esses estudiosos
- apesar de seu grande e incontestável valor - não eram especialistas, mas
intelectuais e filósofos no sentido geral do termo. Na verdade, eles utilizavam
a filosofia de Nietzsche para contestar a maneira habitual de se compreender a
realidade, pois entendiam que Nietzsche poderia ajudá-los a criar maneiras
diferentes de pensá-la. Foi então por meio dessa chave de leitura que o texto
de Nietzsche foi interpretado até a década de 80. É bem verdade que, dentro da
universidade, passou a existir uma espécie de rivalidade entre a leitura
ontoteológica de Heidegger e as interpretações de Deleuze e de Foucault.
Entretanto, nos anos 80 chegamos ao fim dessa tendência. Foi quando aconteceu
uma nova mutação provocada pela, então recente, edição de referência dos textos
de Nietzsche. Essa edição, que começou a ser publicada nos anos 70, trouxe
bruscamente à tona uma série de textos que não tinham sido tornados públicos.
Isso diz respeito, sobretudo, aos textos póstumos, que significam quase 50% da
obra do filósofo. Evidentemente, esse acontecimento modificou totalmente a
pesquisa em relação ao pensamento de Nietzsche, pois provocou uma revisão
teórica que levou o trabalho, praticamente, a zero. As descobertas foram tão
importantes que poderíamos dizer que, a partir delas, passamos a ler Nietzsche
por ele mesmo. Portanto, atualmente, estamos inseridos nessa tendência, a
saber, a de revisar, analisar e promover a confrontação técnica do pensamento
de Nietzsche.
FILOSOFIA E quanto a esse
Nietzsche iconoclasta que era utilizado como uma ferramenta para interpretar e
criticar o mundo efetivo, ele ainda existe na França? Ou Nietzsche se
transformou num simples objeto de estudo da História da Filosofia?
Patrick Wotling Eu diria que
são as duas coisas ao mesmo tempo, pois estamos numa situação mais equilibrada
no que diz respeito à leitura de Nietzsche. Na França, a filosofia nietzschiana
ainda fascina os intelectuais e o grande público. A demanda em relação a
Nietzsche é considerável e é algo que intriga bastante. É muito impressionante
constatar o grande número de aulas, cursos e palestras que acontecem - não para
estudantes universitários - mas para o público em geral. Essa necessidade de
conhecer Nietzsche - não por razões técnicas - como um instrumento para
compreender e criticar o mundo contemporâneo, mostra, portanto, que esse
Nietzsche iconoclasta ainda existe. Acredito, entretanto, que ele é utilizado
de maneira menos brutal que há 20 ou 30 anos. Por outro lado, essa atitude
interpretativa convive com a forte tendência do estudo técnico da História da
Filosofia. Um estudo que utiliza as ferramentas habituais de análise de texto.
Nietzsche não apenas não pensa como os outros filósofos, mas também não
escreve como eles. Em seu texto há, por exemplo, a particularidade da escrita
por uma rede de imagens
FILOSOFIA O que você conhece sobre a pesquisa de Nietzsche no
Brasil? O que acha dela?
Patrick Wotling Há alguns anos, tenho tido a
oportunidade de trabalhar, de maneira muito próxima, com colegas brasileiros.
Além disso, também tive o prazer de estar no Brasil. Portanto, apesar de não
conhecer toda a pesquisa brasileira, pois ela é muito vasta, acho que já
entendo bem a maneira como ela está organizada. Além de comportar figuras
maiores da interpretação - penso, por exemplo, na professora Scarlett Marton
que é, atualmente, uma das maiores conhecedoras de Nietzsche no plano
internacional -, o que se destaca é a quantidade considerável de jovens
pesquisadores que terminam seu doutorado e começam a entrar nas universidades
para trabalhar, com extrema qualidade e rigor, os mais variados temas da
filosofia de Nietzsche. Além disso, outra coisa que caracteriza a pesquisa no
Brasil é algo muito particular, a saber: a atitude cultural de abertura em
relação à pesquisa estrangeira. Na Europa, possuímos uma grande tradição
intelectual, mas, por outro lado, temos também um hábito de fechamento e recusa
às interpretações estrangeiras. Durante muito tempo, cada país europeu teve seu
próprio Nietzsche. Ou seja, cada um tinha uma interpretação própria e fechada
acerca da filosofia nietzschiana. O que, no meu entender, trouxe muitos
problemas à pesquisa como um todo. Com sua atitude de abertura cultural, o
Brasil se mostra, por outro lado, promissor na conquista de um importante papel
nos estudos filosóficos e, particularmente, na pesquisa nietzschiana. E isso eu
digo sinceramente.
FILOSOFIA Você é um dos fundadores e diretores do GIRN,
provavelmente o mais importante grupo internacional de pesquisa sobre a
filosofia nietzschiana. Qual é a sua avaliação acerca da atual pesquisa
Nietzsche? O que ainda é preciso fazer?
Patrick Wotling Antes de
tudo, o que é necessário fazer é encorajar uma tendência que apareceu há cerca
de 20 anos, a saber, o exercício de pesquisa que se direciona, de forma
estrita, à análise e revisão do corpus nietzschiano. Isso
porque, durante muito tempo, tentamos compreender Nietzsche de outra maneira
que não a partir dos seus textos. Esse procedimento criou diversos
"fantasmas" e fez circular ideias falsas e verdadeiras acerca do
filósofo. Na pesquisa atual, entretanto, aplicamos uma metodologia que busca se
voltar apenas ao que existe de maneira textual. Com isso, eliminamos todas as
suposições de ordem psicológica, biográfica ou ideológica - esta última tão
largamente utilizada. A segunda coisa importante é a comunicação internacional
- e aqui, voltamos ao papel do Brasil. Nós estamos num momento em que a
pesquisa está perdendo o caráter nacional e ganhando uma dimensão
internacional. Antes, dialogávamos muito pouco e, como eu disse, cada país
tinha o seu Nietzsche. Agora, o grande esforço - que nós realizamos
particularmente através do GIRN - é tentar fundar, por meio do intercâmbio
cultural, uma maneira comum de trabalhar. Isso é feito por meio da realização
de colóquios, encontros e publicações que visam promover o diálogo entre as
tradições interpretativas. Com isso, visamos difundir o conhecimento e evitar
que cada país permaneça fechado em sua tradição. Os grandes conhecedores de
Nietzsche estão por toda parte. Fazê-los dialogar é a grande tarefa.
FILOSOFIA Você está atualmente,traduzindo
algumas obras de Nietzsche. Pode falar um pouco desses projetos?
Patrick Wotling Há algum
tempo eu realizo essas duas atividades simultaneamente: a análise dos textos de
Nietzsche e a retradução de algumas de suas obras. A França foi um dos
primeiros países a traduzir Nietzsche. E eu diria que nós temos traduções de
boa qualidade, pois elas são realizadas, em geral, por especialistas na língua
alemã - o que é muito bom. Contudo, isso tem trazido alguns problemas. Em
primeiro lugar, esses tradutores, na maioria das vezes, não são filósofos e,
por isso, um certo número de elementos lhes escapa. Eles não enxergam o impacto
filosófico desses elementos. Por outro lado, temos também um problema de
harmonização. Para acelerar o trabalho de tradução, a edição Gallimard,
que é a grande edição francesa, organizou uma equipe de tradutores que não trabalhou
de maneira homogênea. Por conta disso, não há, por exemplo, uma tradução comum
para alguns termos - eu gostaria de frisar que não é a qualidade da tradução
que eu critico, mas a falta de harmonização. Levando esse problema em conta,
nota-se que é impossível para um leitor francês passar de um volume a outro de
forma contínua. Em Nietzsche, existe uma dificuldade no que diz respeito à
particularidade de sua escrita. Ele não apenas não pensa como os outros
filósofos mas também não escreve como eles. No texto nietzschiano há, por
exemplo, a particularidade da escrita por imagens linguísticas - diria melhor,
uma escrita por uma rede de imagens. Ao longo da obra, há uma continuidade do
uso de uma mesma imagem e, por isso, uma imagem deve ser traduzida sempre da
mesma maneira. Ao não levarmos isso em conta, perdemos a continuidade lógica da
obra de Nietzsche. São elementos lógicos que desaparecem para o leitor francês
e, com isso, Nietzsche se transforma num filósofo muito mais enigmático do que
ele realmente é. Por exemplo, se considerarmos que o projeto de transformação
do homem é apresentado de maneira imagética através da noção de züchtung (cultivo)
- uma noção emprestada do universo agrícola -, devemos manter esse sentido por
meio da conservação de uma mesma tradução para o termo. Se não quisermos que
essa noção se perca do alemão, não podemos traduzi-la ora por
"criação", ora por "endereçamento", ora por
"domesticação". Essa variação provoca uma ruptura lógica muito grave.
Grosso modo, essas são as duas razões que me levaram, juntamente com o colega
Eric Blondel, a encarar esse projeto de tradução. Nesse momento, estou
traduzindo O nascimento da tragédia e tenho o projeto, em
alguns anos, de traduzir o primeiro volume deHumano demasiado humano.
FILOSOFIA No Brasil, a Filosofia acaba de voltar ao ensino
médio, mas, mesmo assim, sem o mesmo peso das outras disciplinas. Na França,
por outro lado, a Filosofia é tradicionalmente muito valorizada no meio
educacional. Ela é, por exemplo, matéria muito importante no baccalauréat (espécie
de vestibular francês). O que o senhor pode nos dizer dessa valorização da
Filosofia? Quais são seus reflexos sócioculturais?
Patrick Wotling Realmente é
uma tradição muito antiga que remonta à revolução francesa. Na França, único
país da Europa onde conservamos o ensino da Filosofia obrigatório, todo aluno
que cursa o lycée [ensino médio francês] integralmente tem
contato com o universo filosófico. No último an o do lycée - o
ano do baccalauréat -, o estudo da Filosofia é obrigatório.
Acredito que esse contato desempenha um grande papel cultural e explica a
curiosidade intelectual pela Filosofia na França. No meu entender, isso
constitui um elemento intelectual muito importante para o país. Por outro lado,
é necessário dizer que, recentemente, um contramovimento em relação a essa
tradição surgiu. Há um novo espírito de desconfiança em relação à Filosofia - e
às Ciências Humanas em geral - que, desde há algum tempo, tem se fortalecido na
França - e acredito que também fora dela. Esse espírito é o espírito da
rentabilidade econômica. Uma atitude que busca a rentabilidade imediata e não
enxerga as consequências que uma boa formação humanística pode trazer a longo
prazo. Por enquanto, a Filosofia tem resistido a essa desconfiança. Esperamos
que continue preservada. A Filosofia representa um elemento muito importante na
educação secundária na França.
Vejo como extremamente importante
trabalhar sem ser prisioneiro de uma tradição, aproveitar a riqueza da pesquisa
externa .Tenho realizado isso com o GIRN
FILOSOFIA Para
finalizar, quais são seus próximos projetos?
Patrick Wotling Juntamente com minha colega
Céline Denat, eu estou terminando um Dicionário Nietzsche, que deve
ser publicado em breve. Trata-se de um trabalho mais amplo do que o realizado
no Vocabulário Nietzsche. No longo prazo, temos as traduções de que
falei. Ainda mais para a frente penso também numa obra de fôlego, a análise de
cada livro e fragmento póstumo de Nietzsche. Além dos projetos bibliográficos,
assumi como tarefa a promoção do intercâmbio internacional da filosofia
nietzschiana. Como disse, vejo como extremamente importante trabalhar sem ser
prisioneiro de uma tradição, aproveitar a riqueza da pesquisa externa. Eu tenho
realizado isso com o GIRN, com o qual já temos muitos resultados importantes.
Colegas de diversos países e jovens pesquisadores de diferentes cantos do mundo
conhecem cada vez melhor os trabalhos estrangeiros. Com isso, capacitam-se a
reconhecer campos já bem trabalhados e aqueles nos quais ainda existem
problemas e lacunas. Acredito que essa incitação ao diálogo é algo vital para a
pesquisa filosófica.
** João E. Tude de
Melo Neto é graduado e mestre em Filosofia pela Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), doutorando em Filosofia pela Universidade de São Paulo
(USP), bacharel em Comunicação Social (Jornalismo) pela Universidade Católica
de Pernambuco (Unicap) e membro do Grupo de Estudos Nietzsche (GEN).
A interpretação (como fim da causa e efeito) e o expurgo da "cosmologia" da filosofia de Nietzsche, me parecem as principais características da nova vertente de pensamento praticada por Patrick Wotling e só por isso já se justifica a aproximação da obra que foi recentemente lançado no Brasil.
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