ADEUS POETA DO CONCRETO
Em uma terra que pouca luz se direciona para a cultura, figuras com de Décio jamais serão substituídas ou sequer comparadas.
A homenagem desse Blog ao ilustre poeta, critico e pensador impar, transferimos aqui um texto de umas das suas muitas obras.
A poesia parece estar mais do lado da
música e das artes plásticas e visuais do que da literatura. Ezra Pound acha
que ela não pertence à literatura e Paulo Prado vai mais longe: declara que a
literatura e a filosofia são as duas maiores inimigas da poesia.
De fato, a poesia é um corpo estranho nas artes da palavra. É a menos
consumida de todas as artes, embora pareça ser a mais praticada (muitas vezes,
às escondidas). Uma das maiores raridades do mundo é o poeta que consegue viver
só de sua arte. Há dois mil anos, o poeta latino Ovídio dizia que as folhas de
louro (com as quais se faziam coroas para poetas e heróis) só serviam mesmo
para ADEU temperar o assado. E como poderia ser diferente? Como encontrar um modo de
remunerar o trabalho e o ofício de um poeta? Rilke ficou treze anos sem fazer
um único poema; Valéry, vinte e cinco anos! Outros consumiram boa parte da vida
escrevendo uma obra (sem exclusão de outras): Dante, vinte anos, para a Divina
Comédia; Joyce, dezessete, para a “proesia” do Finnegans Wake;
Pound, quarenta para Os Cantos; Goethe, cinquenta e cinco, para o
Fausto; Mallarmé, trinta, para o Lance de Dados. Mas não é
porque houve um Pelé que você vai deixar de jogar futebol; não é porque há uma
Gal que você vai deixar de cantar.
O poeta é aquele artista que não está
no gibi. E é aquele que ajuda a fundar culturas inteiras. Não dá pra entender a
cultura portuguesa sem Camões; a inglesa sem Shakespeare; a italiana sem Dante;
a alemã sem Goethe; a grega sem Homero; a irlandesa sem Joyce.
Poesia é a arte do anticonsumo. A palavra “poeta” vem do grego “poietes=
aquele que faz”. Faz o quê? Faz linguagem. E aqui está a fonte principal do
mistério. O signo verbal forma um sistema dominante de comunicação… E aí é que
está: o poeta não trabalha com o signo, o poeta trabalha o signo
verbal.
Uma estorinha: O grande pintor
impressionista Degas vivia querendo fazer um poema — sem conseguir. Um dia,
chegou-se para o seu amigo Mallarmé e disse: “Stéphane, idéias maravilhosas não
me faltam — mas eu não consigo fazer um poema”. Respondeu o Mestre: “Meu caro
Edgar, poemas não se fazem com ideias — mas com palavras”.
O poeta faz linguagem para
generalizar e regenerar sentimentos, diz Charles Peirce.
Uma adivinha: Mallarmé falava de uma
flor que está “ausente de todos os buquês”. Que flor é esta?
Charles Morris faz uma esclarecedora
distinção entre os signos. Diz ele que há signos-para e signos-de. Um
signo-para conduz a alguma coisa, a uma ação, a um objetivo transverbal ou
extraverbal, que está fora dele. É o signo da prosa, moeda corrente que usamos
automaticamente todos os dias. Mas quando você foge desse automatismo, quando
você começa a ver, sentir, ouvir, pesar, apalpar as palavras, então as palavras
começam a se transformar em signos-de. Fazendo um trocadilho, o signo-de pára
em si mesmo, é signo de alguma coisa — quer ser essa coisa sem poder sê-lo. Ele
tende a ser um ícone, uma figura. É o signo da poesia. Você vai
ver, mais adiante, que o signo-para é um signo por contigüidade, enquanto o
signo-de é um signo por similaridade.
Para o poeta, mergulhar na vida e mergulhar na linguagem é (quase) a
mesma coisa. Ele vive o conflito signo vs. coisa.
Sabe (isto é, sente o sabor)que a palavra “amor” não é o amor — e não se
conforma…
A resposta para adivinha mallarmaica: a flor que está ausente de todos
osbuquês é a palavra flor.
O poema é um ser de linguagem. O poeta faz linguagem,
fazendo poema. Está sempre criando e recriando a linguagem. Vale dizer: está
sempre criando o mundo. Para ele, a linguagem é um ser vivo, O poeta é radical
(do latim, radix, radicis = raiz): ele trabalha as raízes da
linguagem. Com isso, o mundo da linguagem e a linguagem do mundo ganham
troncos, ramos, flores e frutos.
É por isso que um poema parece falar
de tudo e de nada ao mesmo tempo. É por isso que um (bom) poema não se esgota:
ele cria modelos de sensibilidade. É por isso que um poema, sendo um ser
concreto de linguagem, parece o mais abstrato dos seres. É por isso que um
poema é criação pura — por mais impura que seja. É como uma pessoa, ou como a
vida: por melhor que você a explique, a explicação nunca pode substituí-la. É
como uma pessoa que diz sempre que quer ser compreendida. Mas o que ela quer
mesmo é ser amada.
O linguista Chomsky distingue dois
níveis no fato linguístico: o nível de competência e o nível
de desempenho. O nível de competência refere-se ao nível de domínio
técnico da linguagem (aos três anos de idade, uma criança já domina as
estruturas básicas de seu idioma materno). O nível de desempenho é aquele em
que o falante cria em cima do nível de competência. É claro
que esses níveis não são separados: a criança aprende criando. Todos nós
criamos, mas a (des)educação que recebemos nos orienta no sentido da descriação,
no sentido de permanecermos apenas ao nível de competência.
Muita inibição ao nível do desempenho
é provocada pela insegurança ao nível da competência. É nisto que se apoia a
censura, de fora e de dentro (autocensura), para impedir que você crie.
do livro: “O que é comunicação poética” – de Décio Pignatari
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