Fé na Verdade
A
matemática é a única religião que pode demonstrar que é uma religião.
Paul Barrow
Paul Barrow
1. É a ciência uma religião?
É a matemática realmente
uma religião? E a ciência? Hoje em dia ouve-se muitas vezes dizer que a ciência
é “apenas” mais uma religião. Há algumas semelhanças interessantes. A ciência
oficial, tal como a religião oficial, tem as suas burocracias e hierarquias
entre funcionários, as suas instalações grandiosas e esotéricas sem qualquer
utilidade aparente para os leigos, as suas cerimônias de iniciação. Tal como
uma religião decidida a alargar a sua congregação, a ciência tem uma enorme
falange de missionários — que não se chamam a si mesmos missionários, mas
professores.
Eis uma fantasia engraçada: um observador mal informado
presencia o trabalho de equipe, intrincado e formal, necessário para preparar
uma pessoa para a parafernália esotérica de uma tomografia axial
computadorizada — um exame T.A.C. — e supõe tratar-se de uma cerimônia
religiosa, um sacrifício ritual, porventura, ou a investidura de um novo
arcebispo. Mas estas semelhanças são superficiais. E quanto às semelhanças mais
profundas que têm sido defendidas? A ciência, tal como a religião, tem as suas
ortodoxias e as suas heresias, não tem? Não é afinal a crença no poder do
método científico um credo, tal como os
credos religiosos, no sentido em que em última análise é de uma questão de fé,
tão incapaz de confirmação independente ou fundamento racional como qualquer outro credo religioso? Repare-se que a
pergunta ameaça autodestruir-se: ao contrastar a fé com a confirmação
independente e com o fundamento racional, negando que a ciência como um todo possa
usar os seus próprios métodos para assegurar o seu próprio triunfo, a pergunta
presta homenagem a esses mesmos métodos. Parece existir uma assimetria curiosa:
os cientistas não apelam à autoridade de quaisquer líderes religiosos quando os
seus resultados são contestados, mas muitas religiões atuais adorariam poder
garantir o aval da ciência. Algumas dessas religiões têm nomes que manifestam
esse desejo: os cientistas cristãos e os cientologistas, por exemplo. Temos
também uma palavra para a veneração da ciência: “cientificismo”. Acusam-se de
cientificismo aqueles cuja atitude entusiástica perante as proclamações da
ciência é muito semelhante às atitudes do devoto: em vez de ser cauteloso e
objetivo, tem uma postura de adoração, é acrítico ou até fanático.
Se o summum bonum ou
máximo bem dos cientistas é a verdade, se os cientistas fazem da verdade o seu
Deus, como já foi defendido, não será esta uma atitude tão situada quanto o
culto de Jeová, de Maomé, ou do Anjo Moroni? Não, a nossa fé na verdade é, verdadeiramente,
a nossa fé na
verdade — uma fé partilhada por todos os membros da nossa espécie, mesmo que
exista grande divergência nos métodos admitidos para a obter. A assimetria
acima referida é real: a fé na verdade tem uma primazia que a distingue de todas
as outras fés.
2. O primado da verdade
Neste preciso momento, há bilhões de organismos neste planeta a
jogar às escondidas. Mas para eles não se trata apenas de um jogo. É uma
questão de vida ou de morte. Não se enganarem,
não cometerem erros, tem sido de uma importância primordial para todos os seres
vivos deste planeta desde há mais de 3 bilhões de anos; por isso, estes
organismos desenvolveram milhares de formas diferentes de descobrir como é o
mundo em que vivem, distinguindo os amigos dos inimigos, os alimentos dos
companheiros e ignorando, em grande medida, o resto. É para eles importante não
estarem mal informados acerca destas matérias — mas, regra geral, não se dão
conta disto. Eles são os beneficiários de um equipamento delicadamente concebido
para captar bem o que interessa, mas quando o seu equipamento funciona mal e
capta as coisas mal, não têm, regra geral, recursos para se darem conta disto,
quanto mais para o lamentarem. Eles limitam-se a prosseguir, inconscientemente.
A diferença entre a aparência e a realidade das coisas é um hiato tão fatal
para eles quanto o pode ser para nós, mas eles não se apercebem, em grande
medida, disso. O reconhecimento da diferença entre a aparência e a
realidade é uma descoberta humana. Algumas das outras espécies (alguns
primatas, alguns cetáceos, talvez até algumas aves) reconhecem, aparentemente,
o fenômeno da “crença falsa” — o engano. Mostram alguma sensibilidade aos erros
dos outros e talvez até alguma sensibilidade aos seus próprios erros enquanto
erros, mas não têm a capacidade de reflexão necessária para refletir nesta possibilidade, razão pela qual
não podem usar esta sensibilidade para conceber deliberadamente correções ou
aperfeiçoamentos nos seus próprios instrumentos de busca e dissimulação. Esse tipo
de superação do hiato entre a aparência e a realidade é um ardil que só nós, os
seres humanos, dominamos.
Somos a espécie que descobriu a dúvida. A comida armazenada será
suficiente para o Inverno? Terei feito os cálculos mal? Estará a minha
companheira a enganar-me? Deveríamos ter ido para Sul? Será seguro entrar nesta
caverna? As outras criaturas são muitas vezes visivelmente inquietadas pelas
suas próprias incertezas acerca destas mesmas questões, mas, porque não podem,
na verdade, colocar-se a si mesmas estas perguntas, não podem articular,
perante si próprias, os seus dilemas, nem tomar medidas para aperfeiçoar o seu
controle da verdade. Estão encurraladas num mundo de aparências, fazendo com
elas o melhor que podem, raramente se preocupando (se é que alguma vez o fazem)
com a questão de saber se as aparências correspondem à realidade.*1
Só nós podemos ser arruinados pela dúvida e só nós fomos
impelidos por essa inquietação epistêmica a procurar uma cura: melhores métodos
de procurar a verdade. Ao desejar um conhecimento mais adequado das nossas
reservas de comida, dos nossos territórios, famílias e inimigos, descobrimos os
benefícios de falar sobre isso com os outros, de fazer perguntas e de
transmitir conhecimentos: inventamos a cultura. Depois, inventamos a medição e
a aritmética, os mapas e a escrita. Estas inovações nas áreas da comunicação e
do registro arrastam já consigo um ideal: a verdade. O sentido de fazer
perguntas é encontrar respostas verdadeiras; o
sentido da medição é medir de forma precisa; o sentido
de produzir mapas é encontrar o caminho para o nosso destino. Pode
existir uma Ilha dos Daltônicos (para usar a enorme dose habitual de liberdade
poética de Oliver Sacks), mas não uma Ilha das Pessoas Que Não Reconhecem os
Seus Próprios Filhos. A Terra dos Mentirosos só poderá existir nos enigmas dos
filósofos; não há tradições de Sistemas de Calendários Falsos para registrar
erradamente a passagem do tempo. Em suma, é evidente que o objetivo da verdade
existe em todas as culturas humanas.
Na verdade, o dizer não faria realmente sentido sem o
ideal da verdade. Mas assim que o dizer a verdade foi inventado, descobriram-se
igualmente formas de explorar este pressuposto: sobretudo, a mentira. Como
Talleyrand cinicamente afirmou em tempos, a linguagem foi inventada para
podermos esconder os nossos pensamentos uns dos outros. Dizer a verdade é, e
tem de ser, o pano de fundo de toda a comunicação genuína, incluindo a mentira.
Afinal, o dolo só funciona quando aquele que pretende enganar tem a reputação
de dizer a verdade.*2 A adulação não conduziria a nada sem o pressuposto
inicial de dizer a verdade: arrulhar como uma pomba ou grunhir como um porco
teriam as mesmas probabilidades de captar as boas graças de alguém.
O mundo dos animais não humanos descobriu muitas vezes a
possibilidade da publicidade falsa. Onde existem
espécies venenosas, avisando os possíveis predadores com as suas cores
brilhantes, existem muitas vezes espécies não venenosas que imitam estas cores
brilhantes, obtendo assim proteção barata graças à prática do engano. Mas
aqueles que fazem às vezes de mentirosos entre os animais descobriram também
uma forma de fazer valer a verdade: o princípio de Zahavi. Como defendeu o
biólogo Amotz Zahavi, só a publicidade cara mostra claramente a sua
credibilidade porque não pode ser imitada. Por exemplo, na competição do
acasalamento os pretendentes com chifres incômodos, caudas de pavão ou outras
desvantagens óbvias estão na realidade a dizer: “sou tão bom que posso suportar
estes custos enormes e, mesmo assim, sobreviver”.
Quem quiser competir é obrigado a sustentar estes custos extravagantes, senão
fica sem acasalar. Assim, as espécies não humanas são muitas vezes conduzidas
pelo caminho que conduz diretamente ao verídico; entre os animais, somos os
únicos a apreciar a verdade por si mesma. E, graças à ciência que criamos ao
procurar a verdade, somos também os únicos que podemos ver por que razão a
verdade, apesar de não ser admirada ou até mesmo concebida, é um ideal que
constrange as atividades perceptivas e comunicativas de todos os animais.
Nós,
seres humanos, usamos as nossas capacidades comunicacionais não apenas para
dizer a verdade, mas também para fazer promessas e ameaças, para regatear e
contar histórias, para divertir, mistificar e originar transes hipnóticos ou,
simplesmente, para brincar — mas a rainha de todas estas atividades é a de
dizer a verdade, e foi para esta atividade que inventamos utensílios cada vez
melhores. Juntamente com os nossos utensílios para a agricultura, a construção,
a guerra e o transporte, criamos uma tecnologia da verdade: a ciência.
3. A ciência como a tecnologia da verdade
Tente desenhar uma linha
reta, ou um círculo, “à mão”. A não ser que tenha um talento artístico
considerável, o resultado não será grande coisa. Mas com uma régua e um
compasso, por outro lado, poderá eliminar praticamente as fontes da
instabilidade humana e obter um resultado satisfatório, limpo e objetivo,
sempre igual.
É
a linha realmente reta? Quão reta? Em resposta a estas questões desenvolvemos
testes cada vez mais precisos, seguidos de testes da precisão desses testes, e
assim por diante, consolidando o nosso progresso em direção a uma cada vez
maior precisão e objetividade. Os cientistas são tão vulneráveis ao raciocínio
caprichoso, tão passíveis de serem tentados por motivos baixos, tão
subornáveis, crédulos e desleixados como o resto da humanidade. Os cientistas
não se consideram santos; nem sequer fingem ser sacerdotes (de quem, de acordo
com a tradição, se espera melhores resultados do que os obtidos por todos nós
na luta contra a tentação e a fraqueza moral). Os cientistas acham-se tão
fracos e falíveis quanto qualquer outra pessoa, mas ao reconhecer essas mesmas
fontes de erro em si mesmos e nos grupos a que pertencem, conceberam
complicados sistemas para atar as suas próprias mãos, impedindo energicamente
que as fragilidades morais e os preconceitos contaminem os seus resultados.
Não
são apenas os instrumentos, os utensílios físicos próprios da atividade, que
foram concebidos para resistir ao erro humano. A organização dos métodos está
também sob pressão da seleção rigorosa a favor de cada vez mais fidedignidade e
objetividade. O exemplo clássico é a experiência na qual nem as pessoas
sujeitas ao teste nem os próprios cientistas que fazem o teste sabem quem está
a tomar o fármaco que se pretende testar e quem está a tomar uma substância
inativa, de maneira a que nenhuns desejos e pressentimentos subliminares possam
influenciar a percepção dos resultados. A concepção estatística quer das
experiências individuais quer de conjuntos de experiências faz assim parte da
prática geral de tentativas de rotina nas quais investigadores independentes
procuram reproduzir essas experiências, o que por sua vez faz parte de uma
tradição — imperfeita, mas reconhecida — de publicação dos resultados positivos
e negativos.
O que inspira a fé na aritmética é o fato de centenas de
escrevinhadores, trabalhando independentemente no mesmo problema, chegarem
todos à mesma resposta (excetuando aqueles poucos cujos erros podem ser
encontrados e identificados de forma pacífica para todos). Esta objetividade
incomparável encontra-se também na geometria e nos outros ramos da matemática,
que desde a antiguidade tem sido o próprio modelo do conhecimento positivo, em
oposição ao mundo do fluxo e da controvérsia. No diálogo Ménon, de
Platão, Sócrates e o escravo descobrem em conjunto um caso especial do teorema
de Pitágoras. O exemplo de Platão exprime o reconhecimento claro de um cânone
de verdade ao qual todos os que procuram a verdade devem aspirar, um cânone que
não só nunca foi seriamente desafiado, mas que foi tacitamente aceito — e no
qual, na verdade, se confia fortemente, mesmo em casos de vida ou de morte —
pelos mais vigorosos oponentes da ciência. (Ou conhece o leitor alguma igreja
que controle o seu rebanho, e os seus donativos, sem o benefício da
aritmética?)
Sim,
mas a ciência quase nunca parece assim tão incontroversa, tão consolidada, como
a aritmética. Na verdade, as facções científicas rivais envolvem-se muitas
vezes em batalhas de “evangelização” tão ferozes quanto as que encontramos na
política, ou até mesmo nos conflitos religiosos. A exaltação com que alguns
defensores da ortodoxia científica defendem muitas vezes as suas doutrinas
contra os heréticos não tem, provavelmente, paralelo noutras áreas do combate
retórico entre os seres humanos. Esta competição pela popularidade — e, claro,
pelos financiamentos — são concebidas para captar a atenção e, se forem bem
executadas, conseguem-no. O efeito secundário disto é desviar a atenção do
imenso pano de fundo incontestado de qualquer ciência para a guerra travada nas
suas orlas — e é esse imenso pano de fundo que dá às suas orlas tanta força. O
que é assumido por todos, nestas acaloradas desavenças, é uma coleção
enciclopédica e organizada de fatos científicos banais, com os quais todos
concordam.*3
Robert Proctor chama acertadamente a nossa atenção para uma
distinção entre a neutralidade e a objetividade. Os geólogos sabem muito mais
sobre xistos petrolíferos do que acerca de outras rochas — por razões
econômicas e políticas óbvias — mas o que eles sabem sobre os xistos petrolíferos é
objetivo. E muito do que eles aprendem sobre os xistos petrolíferos pode ser
generalizado a outras rochas menos favorecidas. Queremos que a ciência seja
objetiva; mas não devemos desejar que a ciência seja neutra. Os biólogos sabem
muito mais sobre a mosca da fruta, Drosophila, do que
sabem acerca de outros insetos — não porque se possa enriquecer à custa das
moscas da fruta, mas porque é mais fácil saber coisas acerca das moscas da
fruta do que acerca da maioria das outras espécies. Os biólogos sabem também
muito mais sobre mosquitos do que sobre outros insetos — neste caso porque os
mosquitos são mais prejudiciais para as pessoas do que outras espécies que
seriam muito mais fáceis de estudar. As razões para concentrar a atenção na
ciência são variadas, e todas elas concorrem para fazer com que os rumos da
investigação estejam longe de ser neutras; mas essas razões não fazem,
geralmente, com que a ciência seja menos objetiva. Às vezes, é verdade, um ou
outro preconceito conduz à violação dos cânones do método científico. Estudar o
padrão de certa doença nos homens, por exemplo, ao mesmo tempo em que se
negligencia a recolha de dados sobre a mesma doença nas mulheres, não é algo
que se limita a não ser neutra; é má ciência, tão indefensável em termos
científicos como em termos políticos.
Os métodos da ciência não são completamente seguros, mas podem
ser constantemente aperfeiçoados. E o que é igualmente importante: existe uma
tradição de crítica que obriga ao aperfeiçoamento sempre que se descobrem
defeitos, e seja onde for que se descubram defeitos. Os próprios métodos da
ciência, tal como tudo o que existe, são objeto do escrutínio científico, transformando-se
os métodos em metodologia, a
análise dos métodos. A metodologia, por seu turno, fica debaixo do olhar daepistemologia, a
investigação da própria investigação — não há nada que escape ao questionamento
científico. A ironia é que estes frutos da reflexão científica, que nos mostram
as manchas indeléveis da imperfeição, são por vezes usadas por quem desconfia
da ciência como pontos de partida para negarem a esta um estatuto privilegiado
na área da procura da verdade — como se as instituições e práticas que eles
tomam como concorrentes da ciência não estivessem ainda em pior posição no que
respeita a estas matérias. Mas onde estão os exemplos do abandono da ortodoxia
religiosa face a provas irresistíveis? Na ciência, as heresias de ontem
tornaram-se vezes e vezes sem conta as novas ortodoxias de hoje. Nenhuma
religião exibe este padrão evolutivo ao longo da sua história.
Que diferença existente nestas instituições pode explicar este
fato? Trata-se, claramente, do impulso fornecido pela fé que os cientistas
depositam na verdade. Considerem-se os diagramas de Richard Feynman da
eletrodinâmica quântica, por exemplo.*4 Quando os vi pela primeira vez,
pareceram-me uma espécie de numerologia, uns guias da verdade grotescamente
improváveis, mais parecidos com deitar cartas de tarot ou deitar sortes do que com ciência.
Parecia estranho que um processo tão bizarro pudesse gerar a verdade; mas, na
realidade, funciona: e pode compreender-se por que motivo funciona (com
esforço!). E porque funciona, e porque pode demonstrar-se que funciona, gerando
resultados de uma precisão e constância eptosas, foi aceito como parte do
método científico ortodoxo. E se se conseguisse provar que deitar sortes, ou a
astrologia, geram resultados de uma precisão análoga, também estas práticas
poderiam ser acomodadas na ciência ortodoxa, juntamente com uma teoria que
explicasse por que razão funcionam. Mas é claro que esses métodos nunca foram
legitimados. Os cientistas têm fé na verdade, mas não uma fé cega. Não é como a
fé que os pais têm na honestidade dos seus filhos, ou a fé que os adeptos
desportivos têm na capacidade dos seus heróis para ganhar. É antes como a fé
que qualquer pessoa pode ter num resultado a que vários grupos de pessoas
chegaram de forma independente.
4. Epistemologia: tentar dizer a verdade acerca da verdade
A investigação reflexiva última acerca da investigação ocorre no
ramo da filosofia conhecido como epistemologia, a
teoria do conhecimento. Também aqui as controvérsias existentes nas margens
criaram um efeito nocivo, uma distorção que muitas vezes conduziu a
interpretações erradas. Ao concordar que a verdade é um conceito muito
importante, os epistemólogos tentaram dizer exatamente o que é a verdade — sem se despistarem. Perceber o que é
verdade acerca da verdade, contudo, acabou por se revelar uma tarefa difícil, tecnicamente difícil, uma tarefa na qual as
definições e as teorias que parecem à primeira vista inocentes conduzem a
complicações que rapidamente fazem o teórico enredar-se em doutrinas duvidosas.
A nossa estimada e conhecida amiga, a verdade, tende a transformar-se na
Verdade — com V maiúsculo —, um conceito inflacionado
de verdade que de fato não pode ser defendido.
Eis um dos caminhos que conduzem à dificuldade: suponhamos que o
conhecimento não é nada senão acreditar justificadamente em proposições
verdadeiras. Suponhamos, além disso, que as proposições verdadeiras, ao
contrário das falsas, exprimem fatos. O que são os fatos? Quantos fatos
existem? (Tom, Dick e Harry estão sentados numa sala. Eis um fato. Mas para
além de Tom, Dick e Harry, da sala onde estão sentados e do que lhes serve de
assento, parece que temos um sem-fim de outros fatos: Dick não está de pé, não
existe qualquer cavalo que esteja a ser montado por Tom, e assim por diante, ad infinitum.
Precisaremos realmente admitir uma infinidade de outros fatos juntamente com o
pouquíssimo equipamento deste pequeno mundo?) Já existiam fatos antes de
existirem aqueles que os procuram, ou são antes os fatos como as frases
verdadeiras (inglesas, francesas, latinas etc.), cuja existência teve de
aguardar que se criassem as línguas humanas? São os fatos independentes das
mentes daqueles que acreditam nas proposições que os exprimem? Correspondem as verdades aos fatos? A que
correspondem então as verdades da matemática, se é que correspondem a algo? As
categorias começam a multiplicar-se, não emergindo nenhuma teoria unificada,
óbvia e consensual sobre a verdade.*5 Os céticos, vendo as armadilhas que
parecem rodear qualquer versão da verdade, absoluta ou transcendental,
argumentam a favor de versões mais moderadas, mas os seus adversários
contra-argumentam, mostrando as imperfeições das tentativas rivais de chegar a
uma teoria aceitável. Reina a controvérsia sem fim.
Esta
investigação modesta, mas por vezes brilhante, do próprio significado da
palavra “verdade” tem tido algumas consequências perniciosas. Algumas pessoas
pensaram que os argumentos filosóficos que mostram a situação desesperada das
doutrinas inflacionadas da verdade mostraram que, na realidade, a própria
verdade não era algo digno de apreço ou sequer passível de ser alcançado.
“Desistam!”, parecem essas pessoas dizer. A verdade é um ideal inalcançável e
insensato. Aqueles que buscam uma doutrina da verdade aceitável e defensável
parecem estar a agarrar-se a um credo ultrapassado, dando crédito a uma
religião que não conseguem fundamentar pelos métodos da própria ciência. A
epistemologia começa a parecer-se com um jogo de idiotas — mas apenas porque os
seus observadores esquecem tudo aquilo que ambos os lados aceitam acerca da
verdade. Os efeitos desta visão distorcida podem ser perturbadores.
Quando era um jovem assistente de filosofia, recebi uma vez uma
visita de um colega do Departamento de Literatura Comparada, um elegante e eminente
teórico literário que precisava de ajuda. Senti-me lisonjeado por ele me ter
procurado e fiz o melhor que pude para corresponder ao pedido, mas fiquei,
estranhamente, perplexo com o sentido geral das suas perguntas acerca de vários
tópicos filosóficos. Durante muito tempo não chegamos a lado nenhum, até que
ele conseguiu tornar claro o que desejava. Ele queria “uma epistemologia”,
afirmou. Uma epistemologia. Todos os teóricos
literários dignos desse nome tinham, ao que parece, de exibir uma epistemologia
naquela temporada, sem a qual ele se sentia nu, de maneira que tinha vindo ter
comigo em busca de uma epistemologia que pudesse usar — ele tinha a certeza que
isso estava na moda e queria por isso o dernier cri em epistemologia. Não lhe interessava
que fosse sólida, defensável, nem (como se poderia muito bem dizer) verdadeira; só
tinha de ser nova e diferente e com estilo. Usa os acessórios certos, meu caro
amigo, senão ninguém vai reparar em ti na festa.
Nesse momento percebi que existia entre nós um abismo que até
àquele momento não tinha claramente compreendido. Primeiro pensei tratar-se
unicamente do abismo entre a seriedade e a frivolidade. Mas a minha vaga
inicial de orgulho na minha própria integridade era, de fato, uma reação
ingênua. O meu sentimento de ultraje, o meu sentimento de que tinha
desperdiçado o meu tempo com o bizarro projeto deste homem era, à sua própria
maneira, tão pouco sofisticado como a reação de alguém que, ao assistir pela
primeira vez a uma peça de teatro, irrompe pelo palco para proteger a heroína
do vilão. “Não estás a ver?”, perguntamos, incrédulos. “É um faz-de-conta. É arte. Não é suposto ser
tomado literalmente!” Neste contexto, a demanda deste homem não era afinal tão
vergonhosa quanto isso. Eu não teria ficado ofendido se um colega do
Departamento de Teatro me tivesse pedido alguns metros de livros para colocar
nas prateleiras do cenário para a sua produção da peça Jumpers, de Tom
Stoppard, pois não? Que mal haveria em abastecer este amigo com uma série de
vistosas doutrinas epistemológicas escandalosas, com as quais ele poderia
excitar ou confundir os seus colegas?
O que seria errado, uma vez que ele não se dava conta do abismo,
não reconhecendo sequer a sua existência, seria o fato de a minha concordância
com a sua pândega consumista contribuir para o aviltamento de um bem precioso e
para a erosão de uma distinção valiosa. Muitas pessoas, incluindo quer os espectadores
quer os participantes, não se dão conta deste abismo, ou negam ativamente a sua
existência; e é aí que está o problema. O que é triste nisto tudo é que em
alguns círculos intelectuais, habitados por alguns dos nossos pensadores mais
avançados nas artes e nas humanidades, esta atitude passa por ser uma
sofisticada apreciação da futilidade da demonstração e da relatividade de todas
as afirmações de conhecimento. Na verdade, esta opinião, longe de ser
sofisticada, é o cúmulo da ingenuidade inconsciente, só possível graças à
ignorância grosseira dos métodos já demonstrados de procura científica da
verdade, assim como do seu poder. Como muitos outros ingênuos, estes
pensadores, ao refletirem na manifesta insuficiência dos seus métodos de procura da verdade para
atingir resultados estáveis e valiosos, generalizam inocentemente a partir dos
seus próprios casos, concluindo que mais ninguém sabe como descobrir a verdade.
Entre
os que contribuem para este problema está, lamento dizê-lo, um anterior orador
nas Conferências da Amnistia de Oxford, o meu bom amigo Dick Rorty. Rorty e eu
temos vindo a discordar construtivamente desde há mais de um quarto de século.
Penso que cada um de nós ensinou muito ao outro, através do processo recíproco
de polir as nossas discordâncias mútuas. Não há outro filósofo contemporâneo
com quem tenha aprendido mais. Rorty abriu os horizontes da filosofia
contemporânea, mostrando de forma perspicaz a nós, filósofos, muito acerca do
modo como os nossos próprios projetos têm resultado dos projetos filosóficos do
passado distante e recente, ao mesmo tempo em que corajosamente descreve e
prescreve rumos futuros. Mas não concordamos de maneira nenhuma — por enquanto
— no que respeita à sua tentativa, ao longo dos anos, de mostrar que os debates
dos filósofos acerca da Verdade e da Realidade eliminam de fato o abismo,
permitem de fato a derrapagem para uma forma de relativismo. No fim de contas,
diz-nos Rorty, tudo são apenas “conversas”, restando apenas bases políticas ou
históricas ou estéticas para assumir um ou outro papel numa conversa que
continua.
Rorty tem tentado muitas vezes fazer-me alinhar na sua campanha,
declarando poder encontrar na minha própria obra um ou outroinsight explosivo que o ajudaria no seu
projeto de destruir o ilusório edifício da objetividade. A passagem com que
termino o meu livro Consciousness Explained (1991)
é uma das suas favoritas:
Trata-se
apenas de uma guerra de metáforas, poderá dizer-se — mas as metáforas não são
“apenas” metáforas; as metáforas são instrumentos do pensamento. Ninguém pode
pensar acerca da consciência sem instrumentos, por isso é importante
equiparmo-nos com os melhores instrumentos possíveis. Repare-se no que
construímos com os nossos instrumentos. Poderíamos nós imaginar tudo isto sem
eles? [pág. 455]
“Gostaria”, afirma Rorty, “que ele tivesse dado mais um passo e
que tivesse acrescentado que esses instrumentos são tudo o que a investigação
pode alguma vez fornecer, porque a investigação nunca é ‘pura’ no sentido do
‘projeto de investigação pura’ de [Bernard] Williams. A investigação é sempre
uma questão de alcançar algo que queremos.” (“Holism,
Intrinsicality, Transcendence”, in Dahlbom, org., Dennett and his Critics. 1993) Mas eu nunca daria tal passo, pois apesar de as metáforas
serem de fato instrumentos de pensamento insubstituíveis, não são os únicos
instrumentos insubstituíveis. Os microscópios e a matemática e os scanners de IMR (imagem por ressonância
magnética) são alguns dos outros. Sim, toda a investigação é uma questão de
alcançar o que queremos: a verdade acerca de algo que nos interessa, se as
coisas forem como devem ser.
Quando
os filósofos discutem acerca da verdade estão a discutir acerca de como não
inflacionar a verdade acerca da verdade, transformando-a na Verdade acerca da
Verdade — uma doutrina absolutista que faça exigências indefensáveis aos nossos
sistemas conceituais. A este respeito, a discussão é análoga aos debates sobre
a realidade do tempo, por exemplo, ou sobre a realidade do passado. Existem
investigações filosóficas sofisticadas e meritórias sobre a questão de saber
se, se formos precisos, o passado será real. As opiniões dividem-se, mas estará
enganado quem pensar que se rejeitam afirmações como as seguintes:
A
vida surgiu neste planeta há mais de três mil milhões de anos.
O
Holocausto aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial.
Jack
Ruby disparou a matar sobre Lee Harvey Oswald às 11:21 da manhã, hora de
Dallas, no dia 24 de Novembro de 1963.
Estas
são verdades sobre acontecimentos que ocorreram de fato. As suas negações são
falsidades. Nenhum filósofo em seu perfeito juízo alguma vez pensou o
contrário, apesar de no calor da batalha terem por vezes afirmado coisas que
poderiam interpretar-se dessa maneira.
Richard
Rorty merece os muitos leitores seduzidos que tem nas artes e humanidades,
assim como nas ciências sociais “humanísticas”, mas quando os seus leitores o
interpretam entusiasticamente como alguém que encoraja o ceticismo
pós-modernista acerca da verdade, estão a precipitar-se por caminhos que ele
próprio se absteve de tomar. Quando o pressiono sobre estes tópicos, ele
concede a existência de um conceito útil de verdade que sobrevive a todas as
corrosivas objeções filosóficas. Rorty reconhece que este prestável e modesto
conceito de verdade tem os seus usos: quando queremos comparar, em termos de
precisão, dois mapas da província, por exemplo, ou quando se trata de saber se
o réu cometeu ou não o crime de que é acusado.
Assim,
até mesmo Richard Rorty reconhece o hiato, e a importância do hiato, entre a
realidade e a aparência, entre os exercícios dramáticos que podem entreter-nos
sem pretenderem dizer a verdade, e aqueles que procuram, e muitas vezes
conseguem, a verdade. Rorty chama a isto uma concepção “vegetariana” da
verdade. Muito bem, sejamos então todos vegetarianos acerca da verdade. Em
qualquer caso, os cientistas nunca quiseram ser uns carnívoros radicais.
5. A verdade pode magoar
Toda a gente deseja a
verdade. Quando o leitor se interroga sobre se o seu vizinho o enganou, ou se
há peixes nesta área do lago, ou para que lado deve caminhar para chegar a
casa, está interessado na verdade. Mas então, se a verdade é tão maravilhosa,
por que motivo existe tanto antagonismo em relação à ciência? Toda a gente
aprecia a verdade; mas nem toda a gente aprecia os instrumentos científicos de
procura da verdade.
Ao que parece, algumas pessoas prefeririam outros métodos mais
tradicionais de alcançar a verdade: a astrologia, a adivinhação, os profetas e
gurus e xamãs, o transe e a consulta de vários textos sagrados. Nestes casos, o
veredicto da ciência é tão familiar que quase nem preciso repeti-lo: enquanto
diversões ou exercícios de elasticidade mental, todas estas atividades têm os
seus méritos, mas, enquanto métodos para procurar a verdade, nenhum deles pode
competir com a ciência — um fato em geral reconhecido tacitamente pelos que
defendem a sua prática alternativa favorita através do que afirmam ser a base científica (que outra coisa havia de ser?) dos
seus poderes. Nunca encontramos um crente na comunicação com o além a procurar
o apoio de uma associação de astrólogos ou de um Colégio dos Cardiais; pelo
contrário: exibem-se avidamente todos os farrapos de possíveis indícios
estatísticos e qualquer físico ou matemático extraviado que possa oferecer um
testemunho favorável.
Mas então por que motivo há tanto pavor, se mesmo os que
procuram passar palavra acerca de alternativas apelam regularmente para a
ciência? A resposta é amplamente conhecida: a verdade pode magoar. Sem dúvida
que pode. Isto não é uma ilusão, mas é por vezes negado ou ignorado por
cientistas e outras pessoas que fingem acreditar que a verdade acima de tudo é o bem supremo. Posso facilmente
descrever circunstâncias nas quais eu próprio mentiria ou omitiria a verdade
para evitar o sofrimento humano. A uma senhora idosa, no fim dos seus dias,
nada resta senão as histórias dos feitos heroicos do seu filho — vai o leitor
dizer-lhe a verdade quando o seu filho for preso, condenado por um crime
terrível e humilhado? Não será para ela melhor deixar este mundo em ignorante
serenidade? Claro que é, afirmo eu. Mas note-se que mesmo aqui temos de
compreender estes casos como exceções à regra. Não poderíamos oferecer a esta
mulher o conforto das nossas mentiras se mentir fosse a regra geral; ela tem de
acreditar em nós quando falamos com ela.
É um fato que as pessoas não querem muitas vezes saber a
verdade. E é um fato mais inquietante que as pessoas não queiram muitas vezes
que os outros saibam a verdade. Mas, tentar
transformar estes fatos de forma a que apoiem a ideia estúpida de que a própria
fé na verdade é uma atitude humana relativa a certas culturas, situada ou em
qualquer caso opcional, é confundir tudo. O pai do acusado que ouve em tribunal
os testemunhos contra o seu filho, a mulher que se pergunta se o marido a anda
a enganar — eles podem muito bem não querer saber a verdade, e podem ter razão
em não querer saber a verdade, mas o fato é que acreditam na verdade; isso é
claro. Eles sabem que a verdade está aí, para ser evitada ou abraçada, e sabem
que a verdade é importante. É por isso que eles podem muito bem não querer
saber a verdade. Porque a verdade pode magoar. Podem conseguir enganar-se a si
mesmos, pensando que a atitude que têm nestas ocasiões perante a verdade
reflete um defeito da própria verdade, assim como da própria procura e
descoberta da verdade — mas se isto acontecer é puro autoengano. O máximo a que
podem aspirar agarrar-se é à ideia de que podem existir boas razões, as
melhores razões — no tribunal da verdade, note-se — para, por vezes, suprimir
ou ignorar a verdade.
Não devíamos, então, considerar a possibilidade de suprimir, em
grande escala, a verdade, protegendo assim dos seus efeitos corrosivos vários
grupos em situação de risco? Pense no que acontece inevitavelmente quando a
nossa cultura científica, e a sua tecnologia, é apresentada a populações que
têm até agora sido poupadas às suas inovações. Que efeitos terão os telefones
celulares e a MTV e o armamento de alta tecnologia (e a medicina de alta
tecnologia para combater os efeitos do armamento de alta tecnologia) nos povos
subdesenvolvidos do Terceiro Mundo? Sem dúvida, muitos efeitos destrutivos e
penosos. Mas não temos de olhar para os artifícios eletrônicos para ver o mal
que pode ser cometido. Tijs Goldschmidt, no seu fascinante livro,Darwin’s Dreampond (1996), conta-nos os efeitos
devastadores de introduzir a perca do Nilo no Lago Vitória (Uganda): a eptosa
espécie de peixes ciclóstomos quase se extinguiu em apenas alguns anos, uma
perda catastrófica… isto é, para os biólogos, mas não necessariamente para as
pessoas que viviam nas suas margens e que podem agora completar as suas dietas
de subsistência com uma nova e abundante pesca. Goldschmidt também descreve,
todavia, um efeito cultural análogo: a extinção dos tradicionais cestos sukuma.
Estes cestos à prova de água eram tecidos pelas mulheres e
usados nas festas religiosas como vasilhas para consumir vastas quantidades de pombe, uma cerveja
de milho [...] Os cestos eram entretecidos, em padrões geométricos de
significado simbólico, com folhas de erva tingidas com manganês. Nem sempre era
possível descobrir o significado dos padrões porque a introdução domazabethi — os
pratos de alumínio, cujo nome deriva da rainha Isabel, introduzidos em grande
escala durante o domínio britânico — foi o fim da cultura masonzo. Falei com
uma mulher idosa de uma pequena aldeia que, ao fim de mais de 30 anos, estava
ainda revoltada com os mazabethi [...] “Sisi wanawake, nós,
as mulheres, costumávamos tecer cestos, sentadas em grupo, ao mesmo tempo em
que falávamos umas com as outras. Não vejo nada de mal nisso. Cada mulher dava
o seu melhor para tentar fazer o cesto mais bonito que fosse possível. Os
mazabethi acabaram com tudo isso.” [pág. 39]
Acho
que ainda mais triste é o efeito da introdução de machados de aço junto dos
índios panare da Venezuela.
Dantes, quando se usavam os machados de pedra, juntavam-se
vários indivíduos, trabalhando em conjunto para cortar árvores para fazer um
jardim. Contudo, com a introdução do machado de aço, um só homem pode fazer um
jardim sem qualquer ajuda [...] A colaboração já não é obrigatória nem é particularmente
frequente. [Sublinhado meu] (Katharine Milton, “Civilization and Its Discontents”, Natural History, Março,
1992, pp. 37-42)
Estas
pessoas perderam a sua “estrutura de interdependência cooperativa” tradicional,
perdendo também grande parte do conhecimento, acumulado ao longo dos séculos,
da fauna e da flora do seu próprio mundo. Muitas vezes as suas línguas
extinguem-se numa ou duas gerações. Estas são sem dúvida grandes perdas. Mas
que políticas devemos adotar em relação a eles?
Em
primeiro lugar, não devemos esquecer o óbvio: quando os povos de culturas
tradicionais contatam com a cultura ocidental adotam entusiasticamente quase
todas as novas práticas, os novos instrumentos, os novos costumes. Por quê?
Porque sabem o que sempre desejaram, valorizaram e ambicionaram, e sentem que
essas novidades são melhores meios para os seus próprios fins do que os seus
velhos costumes. Os machados de aço substituem os de pedra, os motores fora de
borda substituem as velas, a medicina moderna substitui os curandeiros, os
radiotransistores e os telefones celulares são avidamente desejados. Estas pessoas
não são afinal melhores do que nós a prever os efeitos em longo prazo das suas
escolhas, mas, com base na informação de que dispõem, as suas escolhas são
racionais.
É
sem dúvida verdade que por vezes a “publicidade” espalhafatosa, astuciosamente
dirigida às suas noções insulares do que a vida tem para nos oferecer, tira
partido da sua inocência. Mas repare-se que esta tática deplorável não é
domínio exclusivo dos que os exploram. Aqueles que os querem proteger da
tecnologia moderna estão aparentemente preparados para morder a língua e
mentir-lhes descaradamente: “Escondam as vossas maravilhas de alta tecnologia!
Se lhes derem alguma coisa, impinjam-lhes pérolas de fantasia coloridas ou
quaisquer outros nadas que eles possam rapidamente incorporar na sua cultura
tradicional.”
É assim que se tratam membros adultos da nossa própria espécie?
Não temos todos nós, entre outros direitos humanos, o
direito de saber a verdade? É escandalosamente paternalista dizer que devemos
isolar estas pessoas dos frutos da civilização. Serão eles como elefantes, para
serem postos numa reserva? Acho que devemos tratá-los como tratamos os nossos
próprios cidadãos: oferecemos-lhes todos os instrumentos de procura da verdade
que temos, de maneira a que possam escolher com base numa opinião informada —
se assim o escolherem. É claro que esta política é uma estrada de sentido
único. Depois de os termos informado já violamos a sua prístina pureza. Não é
possível voltar atrás.
Não
é possível ter as duas coisas. Se se trata de humanos adultos, então têm o
direito de saber, não têm? Está o leitor realmente disposto a tomar medidas no
sentido de lhes impedir o acesso à educação? Mas a educação irá transformá-los
completamente. Perderão muitos dos seus velhos costumes. Em alguns casos será um
alívio, noutros será, sem dúvida, trágico. Mas que cânone usaria o leitor para
definir o que devem e o que não devem perder? Devem preservar os costumes dos
últimos 100 anos? Ou dos últimos 10 anos? Ou dos últimos 10 milênios? E, o mais
importante de tudo, o que nos daria afinal o direito de os discriminar em
relação aos nossos próprios cidadãos?
E já agora, estas restrições autoimpostas são exigidas por quem?
Quem é que implora que fechemos as nossas bocas “imperialistas” e que guardemos
as chamadas verdades científicas para nós próprios? Não é, em geral, o povo,
mas antes os seus autoproclamados líderes espirituais. São eles, e não o seu
rebanho, que exigem que o seu rebanho seja protegido das influências corrosivas
e irreversíveis da nossa cultura científica da verdade. As pessoas que
trabalham nos cultural studies e
outras que agitam a bandeira do multiculturalismo deviam deter-se
cuidadosamente sobre a seguinte sugestão: a sua política bem intencionada de
tolerância das políticas tradicionais que recusam o livre acesso aos
instrumentos científicos de procura da verdade é muitas vezes uma política ao
serviço dos tiranos — e parece-me que são mais as vezes em que isto é assim do
que aquelas em que não o é.
Na
nossa cultura, o conceito de consentimento informado é uma das pedras-de-toque
da liberdade. Mas o próprio conceito de informar as pessoas para que possam
consentir ou não é encarada, noutras culturas, com hostilidade. Na verdade,
penso que os líderes políticos terão cada vez mais dificuldades em manter os
seus povos num estado de falta de informação. Tudo o que precisamos fazer é
continuar a passar a palavra claramente e sempre com o cuidado escrupuloso de
dizer a verdade. De fato, não há nada de novo nesta sugestão. Algumas
instituições, como a BBC Internacional, têm vindo a fazer precisamente isto,
com enorme sucesso, desde há décadas. E ano após ano, a elite de todas as
nações do mundo envia os seus filhos para as nossas universidades para aí
receberem a sua formação. Eles sabem, talvez melhor do que nós próprios
pensamos, que a ciência e a tecnologia da procura da verdade constitui o nosso
mais valioso bem de exportação.
Dept of Philosophy
Tufts University, USA
Tufts University, USA
Referências
·
Akins,
K. A. 1989 Narcissism and Mental
Representation: An Essay on Intentionality and Naturalism, Dissertação de Doutoramento, Dept. of
Philosophy, University of Michigan, Ann Arbor
·
Dennett,
Daniel C. 1991 Consciousness Explained. Nova Iorque e Boston: Little, Brown;
Londres: Allen Lane
·
Feynman, Richard 1985 QED: A Estranha Teoria da Luz e
da Matéria. Trad.
1988, Lisboa: Gradiva
·
Goldschmidt,
Tijs 1996 Darwin’s Dreampond. Cambridge,
MA: MIT Press Hauser, Marc 1996 The Evolution of Communication. Cambridge,
MA: MIT Press
·
Krebs,
John R., e Dawkins, Richard 1978 “Animal Signals: Information or Manipulation”
in J. R. Krebs e N. B. Davies, orgs., Behavioural Ecology: An
Evolutionary Approach, Oxford: Blackwell Scientific Publications,
pp. 282-309
·
Milton,
Katherine 1992 “Civilization and Its Discontents” Natural History, Março,
1992, pp. 37-42
·
Rorty,
Richard 1993 “Holism, Intrinsicality, Transcendence” in Bo Dahlbom, org., Dennett and his Critics. Oxford:
Blackwell
Notas
Artigo inédito,
publicado com a amável autorização da Anistia Internacional: os nossos
agradecimentos a Wesley Williams pela gentileza. Trata-se de uma das Oxford
Amnesty Lectures, proferida pelo autor em Oxford em Janeiro de 1997.
1.
O mundo das aparências foi, para cada um delas, vigorosamente
modificado pela seleção natural em função dos seus interesses estritos. Que
fatos encontram elas? Os seus órgãos dos sentidos — assim como o comportamento
associado à recolha de informação através destes órgãos — foram aperfeiçoados
para serem “narcisistas” (Akins, 1989), foram projetados para exagerarem,
distorcerem, não levarem em conta e ajustarem ou modificarem as suas
capacidades para encontrarem sentidos a favor de interpretações capazes de
preservar a vida. Isto não as impede de descobrir fatos. Pelo contrário,
determina que os fatos que descobrem são os que têm uma perspectiva incrustada
na sua natureza, não sendo portanto fatos do tipo “aqui há água” no sentido do
químico, mas no sentido de um organismo sequioso que não se detém nas minúcias
da definição e que ignora impurezas, desde que estas não atentem contra a sua
saúde. A exatidão das definições, ou a “transdução” de uma “categoria natural”
nunca foi um dos objetivos da Natureza. A incapacidade para compreender este
aspecto conduziu ao aparecimento de uma indústria doméstica de fantasia
filosófica (acerca da Terra Gémea, XYZ e outras quimeras).
2.
John Krebs e Richard Dawkins (1978) abriram o campo de
investigação teórica sobre este aspecto da comunicação. Para uma recensão dos
estudos teóricos e empíricos neste campo, veja-se Marc Hausser, The Evolution of Communication (1996).
3.
Mesmo os observadores supostamente treinados — tais como os que
se dedicam aos novos campos das science studies, ou
sociologia da ciência — não reparam muitas vezes nesta montanha de resultados
tranquilos, concentrando a sua atenção nos momentos excitantes e ruidosos. Na
antropologia em geral, este é o conhecidíssimo problema do preconceito do
observador. Considere a seguinte situação: o leitor obteve uma bolsa para
estudar um grupo humano relativamente exótico, passando por isso vários anos
longe de casa, suportando privações, tédio e isolamento. A perspectiva de
regressar com a descoberta de que essas pessoas são muito parecidas conosco
será encarada por si com muita dificuldade. Ou pior ainda: essas pessoas fazem
exatamente o que dizem que fazem. Por que razão é isto pior? Porque se você, o
antropólogo, não conseguir oferecer uma explicação que contrarie ou que seja
melhor do que a explicação que eles próprios oferecem, parece que esteve a
perder o seu tempo — e o dinheiro da bolsa. Existem, por isso, preconceitos
humanos naturais, e até razoáveis, a favor de concentrar a atenção no
extraordinário, com a esperança de encontrar algo empolgante, algo novo e
surpreendente que compense o esforço da investigação.
4.
A explicação clássica está em QED: A Estranha Teoria da Luz e
da Matéria, Gradiva, 1988.
5.
Se o leitor está a pensar, com impaciência, que existe uma forma
óbvia de desfazer este nó górdio, ótimo. Escreva a sua solução e submeta-a a
uma revista de filosofia. Se tiver razão, ficará famoso por ter resolvido
problemas que embaraçam há anos, senão mesmo séculos, os epistemólogos mais
inteligentes. Mas fique desde já avisado: foram precisamente este tipo de
convicções que levaram a maior parte de nós a enveredar por esta disciplina.
·
autor:
·
tradução:Desidério
Murcho
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original:
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