"NÓS INVENTAMOS A FELICIDADE"...





V

Depois de falar essas palavras, Zaratustra olhou novamente para o povo e calou. “Aí estão eles e riem”, falou para seu coração, “não me compreendem, não sou a boca para seus ouvidos.

Será preciso antes partir-lhes as orelhas, para aprenderem a ouvir com os olhas? Será preciso estrondear com timbales e os pregadores da penitência? Ou acreditarão apenas num homem que balbucia?

Eles possuem algo de que se orgulham. Como chamam mesmo os que os faz orgulhosos? Chamam de cultura, é o que os distingue dos pastores de cabras.
Por isso não gostam de ouvir a palavra “desprezo” quando se fala deles. Então falarei ao seu orgulho.

Então lhes falarei do que é mais desprezível: ou seja, do ultimo homem.

E assim falou Zaratustra ao povo:

É tempo de o homem fixar sua meta. É tempo de o homem plantar o germe de sua mais alta esperança.

Seu solo ainda é rico bastante para isso. Mas um dia este solo será pobre e manso, e nenhuma árvore alta poderá nele crescer.

Ai de nós! Aproxima-se o tempo em que o homem já não lança a flecha de seu anseio por cima do homem, e em que a corda do seu arco desaprendeu de vibrar!

Eu vos digo: É preciso ter ainda o caos dentro de si, para poder dar à  luz uma estrela dançante. Eu vos digo: tende ainda o caos dentro de você.

Ai de nós! Aproxima-se o tempo em que o homem já não dará à luz nenhuma estrela. Ai de nós! Aproxima-se  o tempo do homem mais desprezível , que já não sabe desprezar a si mesmo.

Vede! eu vos mostro o ultimo homem.

“Que e amor? Que é criação? Que é anseio? Que é estrela?” – assim pergunta o ultimo homem, e pisca o olho.

A terra se tornou pequena, então, e nela saltita o ultimo homem, que tudo apequena. Sua espécie é  inextinguível como o pulgão; o ultimo homem é o que tem a vida mais longa.

“Nós inventamos a felicidade” -  dizem os últimos homens, e piscam o olho.

Eles deixaram as regiões onde era duro viver: pois necessita-se de calor. Cada qual ainda ama o vizinho e nele esfrega-se: pois necessita-se de calor.

Adoecer e desconfiar é visto como pecado por eles: anda-se com toda atenção. Um tolo, quem ainda tropeça em pedras ou homens!

Um pouco de veneno de quando em quando: isso gera sonhos agradáveis. E muito veneno por fim, para um agradável morrer.

Ainda se trabalha, pois trabalho é distração. Mas cuida-se para que a distração não canse.

Ninguém mais se torna rico ou pobre: ambas as coisas são árduas. Quem deseja ainda governar? Quem deseja ainda adoecer? Ambas as coisas são árduas.

Nenhum pastor e um só rebanho! Cada um quer o mesmo, cada um é igual: quem sente de outro modo vai voluntariamente para o hospício.

“Outrora o mundo inteiro era doido” – dizem os mais refinados, e piscam o olho.

São inteligentes e sabem tudo o que ocorreu: então sua zombaria não tem fim. Ainda brigam, mas logo se reconciliam – de outro modo, estraga-se o estômago.
Têm seu pequeno prazer do dia e seu pequeno prazer da noite: mas respeitam a  saúde.
“Nós inventamos a felicidade” – dizem os últimos homens, e piscam o olho.-

E aqui findou o primeiro discurso de Zaratustra, que é chamado “prólogo”: pois nesse ponto interromperam-no os gritos e júbilo da multidão. “Dá-nos esse ultimo homem, ó Zaratustra” – clamavam as pessoas – “torna-nos esse ultimo homem!  E nós te presenteamos  o super-homem!” E toda a gente exultava e estalava a língua. Zaratustra entristeceu-se, porém, e disse a seu coração:

Eles não me compreendem: não sou a boca para esse ouvidos.

Vivi demasiado tempo nas montanhas, talvez, e demasiado escutei as árvores e os córregos: agora lhes falo como pastores de cabras.

Plácida está minha alma, e clara como os montes na manhã. Mas eles acham que sou frio, e um zombador de terríveis pilhérias.

E agora eles olham para mim e riem: e, ao rir, também me odeiam. Há um gelo no seu riso.   



Comentários

  1. Onde mora o ultimo homem? Dever ser desprezado ou devemos torna-lo ídolo ou referencia para vislumbrar o além do homem?
    Para os ouvidos de homem de rebanho o além do homem é apenas um divertimento como "ser feliz" e ver o homem sobre a corda.

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