O ANÃO, O CADÁVER E O ENTERRO
VII
Nesse meio-tempo caiu a noite, e a praça se ocultou na escuridão: então a gente se dispersou, pois mesmo a curiosidade e o espanto se fadigam. Mas Zaratustra ficou sentado junto ao morto, no chão, envolvido em pensamentos, e assim se esqueceu do tempo. Enfim chegou a madrugada, porém. e um vento frio deslizou pelo solitário. Então Zaratustra se levantou e disse ao seu coração:
Na verdade, uma bela pescaria teve hoje Zaratustra! Nenhum homem pescou, e sim um cadáver.
Inquietante é a existência humana, e ainda sem sentido algum: um palhaço pode lhe ser uma fatalidade.
Quero ensinar aos homens o sentido do seu ser: o qual é o super-homem, o raio vindo da negra nuvem do homem.
Mas ainda me acho longe deles, e o meu sentido não fala aos seus sentidos. Ainda sou, para os homens, o ponto intermediário entre um tolo e um cadáver.
Escura é a noite, escuros são os caminhos de Zaratustra. Vem, rígido e frio companheiro! Levo-te para onde te sepultarei com as minhas mãos.
VIII
Após dizer isso a seu coração, Zaratustra levou as costas o cadáver e se pôs a caminho. Ainda não havia dado cem passos quando alguém se aproximou de mansinho e lhe sussurrou algo no ouvido - e vede! era o palhaço da torre. "Vai- embora desta cidade, ó Zaratustra" falou ele; "muitos aqui te odeiam. Odeiam-te os bons e os justos, e te chamam de seu inimigo e desprezador; odeiam´te os crentes da verdadeira fé, e te chamam de perigo para a multidão.Tua sorte foi que riram de ti; na verdade, falaste à maneira de um palhaço. Tua sorte foi que te juntaste ao cachorro morto; ao te rebaixar e assim, te salvaste por hoje.Mas deixa esta cidade - ou amanhã salto sobre ti, um vivo sobre um morto." Depois de de dizer isso, o homem desapareceu,mas Zaratustra continuou pelas ruas escuras.
Na porta de cidade encontrou os coveiros; eles iluminaram seu rosto com as tochas, reconheceram Zaratustra e dele zombaram muito. "Zaratustra carrega o cachorro morto; que bom que Zaratustra se tornou um coveiro! Pois nossas mãos são limpas demais para esse assado. E será que Zaratustra vai roubar um pedaço ao demônio? Então muito bem! Boa sorte e bom apetite! Se o demônio não for um ladrão melhor que Zaratustra! - ele rouba dos dois, ele come os dois!" E eles riam entre si, juntando os rostos.Zaratustra não disse palavra, e seguiu seu caminho. Após andar duas horas, ao longo de florestas e pântanos, tinha ouvido bastante os uivos famintos dos lobos, e ele próprio sentiu fome. Então parou a uma casa solitária, onde havia uma luz acessa.
A fome me assalta como um bandoleiro, disse Zaratustra. Em florestas e pântanos e no fundo da noite me assalta a minha fome.
Singulares caprichos tem minha fome. Muitas vezes me vem apenas após a refeição, e hoje não veio durante o dia inteiro: onde permanecia ela?
E nisso Zaratustra bateu à porta. Um homem velho apareceu; carregava a luz e perguntou: "Quem me procura, a mim e a meu sono ruim?"
Um vivo e um morto", disse Zaratustra: "Dai-me de comer e de beber, esquece-me de fazê-lo durante o dia. Quem dá de comer ao faminto revigora sua própria alma; assim fala a sabedoria."
O velho se retirou, mas logo voltou e ofereceu pão e vinho a Zaratustra. "Esta é uma má região para os que tem fome", disse ele; "por isso moro aqui. Animais e homens vêm a mim, o eremita. Mas dize ao teu companheiro que também com a e beba, ele está mais cansado que tu." Zaratustra respondeu: Está morto o meu companheiro, será difícil convencê-lo". " Não tenho nada com isso", disse o velho, irritado; quem bate tem que aceitar o que ofereço. Come, e passar bem!" -
Em seguida, Zaratustra andou mais duas horas, confiando no caminho e na luz das estrelas: pois ele costumava andar a noite e gostava de olas o rosto de tudo que dorme. Mas ao alvorecer Zaratustra se achou numa densa floresta, em que não se enxergava mais nenhum caminho. Então colocou o morto numa arvore oca, á altura de sua cabeça - pois queria protegê-lo dos lobos -, e deitou-se no musgo do chão. E logo adormeceu, de corpo cansado, mas de alma serena.
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