O ROSTO
Que rosto apresentamos? Apenas em uma aparência desejante de uma realidade? A busca de uma verdade aparente ou uma realidade "real"?
GIORGIO AGAMBEN
Todos os seres viventes estão no
aberto, manifestam-se e brilham na aparência. Porém, apenas o homem quer
apropriar-se dessa abertura, tomar sua própria aparência, o próprio ser
manifesto. A linguagem é essa apropriação que transforma a natureza em rosto.
Por isso, a aparência torna-se um problema para o homem, o lugar de uma luta
pela verdade.
O rosto é o ser inevitavelmente exposto do homem e, também, o
seu próprio restar escondido nessa abertura. E o rosto é o único lugar da
comunidade, a única cidade possível. Isso que, em cada singular, abre ao
político, é a tragicomédia da verdade em que ele recai já, sempre, e à qual
deve retornar desde o início.
Isso que o rosto expõe e revela,
não é qualquer coisa que possa ser formulada nessa ou naquela proposição
significante, nem mesmo é um segredo destinado a restar para sempre
incomunicável. A revelação do rosto é a revelação da própria linguagem. Essa
não tem, consequentemente, nenhum conteúdo real, não diz a verdade sobre esse
ou aquele estado da alma ou de fato, sobre esse ou aquele aspecto do homem ou
do mundo: é unicamente abertura, unicamente comunicabilidade. Caminhar pela luz
do rosto significa ser essa abertura, padecer dela.
Assim, o rosto é, sobretudo, paixão da revelação, paixão da
linguagem. A natureza adquire um rosto no ponto em que se sente revelada pela
linguagem. No rosto, seu ser exposto e traduzido na palavra, seu revelar-se na
impossibilidade de haver um segredo, emerge como castidade ou perturbação,
descaramento ou vergonha.
O rosto não coincide com a face.[i] Por toda parte em que algo alcança a exposição e tenta tomar o próprio ser exposto – por toda parte em que um ser aparece afundado na aparência e deve, desde o início, retornar a ela –, tem-se um rosto. (Assim, a arte pode dar um rosto até mesmo a um objeto inanimado, a uma natureza morta; e, por isso, as bruxas, que os inquisidores acusavam de beijarem o ânus de Satã durante o Sabá, respondiam que ainda assim se tratava de um rosto. E é possível, hoje, que toda a terra, transformada em um deserto da cega vontade dos homens, venha a tornar-se um único rosto).
O rosto não coincide com a face.[i] Por toda parte em que algo alcança a exposição e tenta tomar o próprio ser exposto – por toda parte em que um ser aparece afundado na aparência e deve, desde o início, retornar a ela –, tem-se um rosto. (Assim, a arte pode dar um rosto até mesmo a um objeto inanimado, a uma natureza morta; e, por isso, as bruxas, que os inquisidores acusavam de beijarem o ânus de Satã durante o Sabá, respondiam que ainda assim se tratava de um rosto. E é possível, hoje, que toda a terra, transformada em um deserto da cega vontade dos homens, venha a tornar-se um único rosto).
Olho alguém nos olhos: estes se abaixam – é a vergonha, que é
vergonha do rosto que há atrás do olhar –, ou me olham, por sua vez. E, ao me
olharem, eles podem impudicamente exibir seu rosto como se atrás dele houvesse
um outro olho, abissal, que conhece aquele vazio e o usa como um esconderijo
impenetrável; ou, com um despudor casto e sem reservas, deixando que no vazio de
nossos olhares tenham lugar o amor e a palavra.
A exposição é o lugar da política. Se não há uma política
animal, talvez isso ocorra porque os animais, que estão desde já no aberto, não
buscam apropriarem-se de sua exposição; demoram-se nela, simplesmente, sem se
ocuparem dela. Por isso, eles não se interessam pelos espelhos, pela imagem
enquanto imagem. O homem, ao revés, querendo reconhecer-se – isto é,
apropriar-se de sua própria aparência –, separa as imagens das coisas, dá-lhes
um nome. Assim, ele transforma o aberto em um mundo, isto é, em um campo de uma
luta política sem quartel.[ii] A essa luta, cujo objeto é a verdade, chama-se
História.
Nas fotografias pornográficas, acontece com frequência que os
sujeitos retratados olhem, com um estratagema calculado, em direção à objetiva,
exibindo, assim, a consciência de estar exposto ao olhar. Esse gesto imprevisto
desmente violentamente a ficção implícita no consumo de tais imagens, segundo a
qual aquele que as olha surpreende, não visto, os atores: estes afrontam
conscientemente o olhar, obrigam o voyeur a olhá-los nos olhos. Naquele átimo,
a natureza insubstancial do rosto humano emerge repentinamente à luz. Que os
atores olhem para a objetiva, significa que eles mostram estar simulando; e,
todavia, paradoxalmente, propriamente na medida em que exibem a falsificação,
eles parecem mais verdadeiros. O mesmo procedimento é, hoje, ampliado na
publicidade: a imagem parece mais convincente se mostra abertamente sua própria
ficção. Em ambos os casos, quem olha, sem querer, choca-se contra qualquer
coisa que concerne inequivocamente à essência do rosto, à estrutura mesma da
verdade.
Chamamos tragicomédia da aparência o fato de que o rosto
revela-se próprio apenas enquanto oculta, e oculta na mesma medida em que
revela. Dessa forma, a aparência que deveria manifestá-lo torna-se, para o
homem, semblante que o traduz naquilo em que já não pode mais reconhecer-se.
Próprio, porque o rosto é unicamente o lugar da verdade; isto é, é, também,
imediatamente o lugar de uma simulação e de uma impropriedade irredutível. Isso
não significa que a aparência dissimule o que revela fazendo-o parecer aquilo
que, verdadeiramente, não é: uma vez que aquilo que o homem é verdadeiramente,
não é nada mais que essa dissimulação e essa inquietude na aparência. Visto que
o homem não é, nem possui, do ser qualquer essência ou natureza – nem qualquer
destino específico –, a sua condição é a mais vazia e a mais insubstancial: a
verdade. O que resta escondido não é, para ele, qualquer coisa por detrás da
aparência, mas o próprio aparecer, o seu não ser outro senão rosto. Trazer à
aparência a aparência mesma é a tarefa da política.
A verdade, o rosto, a exposição, constituem, hoje, objeto de
uma guerra civil planetária, cujo campo de batalha é toda a vida social, cujas
tropas são os media, cujas vítimas são todos os povos da terra. Políticos,
mediocratas e publicitários compreenderam o caráter insubstancial do rosto e da
comunidade que ele abre, e transformam-no em um segredo miserável cujo controle
se trata de assegurar a todo custo. O poder dos Estados não é mais fundado,
hoje, sobre o monopólio do uso legítimo da violência (que eles compartilham
sempre mais de bom grado com outras organizações não-soberanas – ONU,
organizações terroristas), mas, sobretudo, sobre o controle da aparência (da
doxa).[iii] O constituir-se da política em uma esfera autônoma dá-se ao passo
em que ocorre a separação do rosto em um mundo espetacular, em que a
comunicação humana é apartada de si mesma. A exposição se transforma, assim, em
um valor que se acumula através das imagens e dosmedia, e cuja gestão é vigiada
ciosamente por uma nova classe de burocratas.
Se os homens tivessem de comunicar-se sempre e por qualquer
coisa, não haveria mais, propriamente, política, mas unicamente troca e
conflito, sinais e respostas; mas, porque os homens têm, acima de tudo, de
comunicar-se uma pura comunicabilidade (isto é, a linguagem), então, a política
surge como o vazio comunicativo em que o rosto humano emerge como tal. É desse
espaço vazio que políticos e mediocratas ocupam-se de assegurar-se o controle,
mantendo separado em uma esfera que lhes garante a inapropriabilidade e impedindo
que a comunicatividade mesma venha à luz. Isso significa que a análise marxiana
seja integrada no sentido de que o capitalismo (ou qualquer outro nome que se
queira dar ao processo que hoje domina a história mundial) não era votado
apenas à expropriação da atividade produtiva, mas também, e sobretudo, à
alienação da própria linguagem, da própria natureza comunicativa do homem.
Na medida em que não é senão comunicabilidade, todo rosto
humano, inclusive o mais nobre e belo, está sempre suspenso por um fio sobre um
abismo. Por isso mesmo, os rostos mais delicados e cheios de graça parecem, às
vezes, imprevisivelmente, desfeitos, deixando emergir o fundo informe que os
ameaça. Porém, esse fundo amorfo não é senão a própria abertura, a própria
comunicabilidade, enquanto restam pressupostos a si mesmos como uma coisa.
Indene é apenas o rosto que assume abaixo de si o abismo da própria
comunicabilidade e consegue expô-lo sem temor nem complacência.
Por isso, todo rosto se contrai em uma expressão, enrijece em
um caractere e, deste modo, destina-se e se aprofunda em si mesmo. O caractere
é a deformação do rosto no ponto em que – sendo unicamente comunicabilidade –
se apercebe de não ter nada a exprimir, e silenciosamente retira-se atrás de si
em sua própria muda identidade. O caractere é a constitutiva reticência do
homem na palavra; mas aquilo que seria tomado é apenas uma ilatência,[iv] uma
pura visibilidade: unicamente um semblante. E o rosto não é qualquer coisa que
transcenda o semblante: é a exposição da face na sua nudez, vitória sobre o
caractere – palavra.
Uma vez que o homem é, e tem de ser, unicamente rosto, tudo
se cinde para ele em próprio e impróprio, verdadeiro e falso, possível e real.
Toda aparência que se manifesta, torna-se, assim, para ele, própria e factícia,
e o põe frente à tarefa de fazer própria a verdade. Mas essa não é em si mesma
mais uma coisa de que se possa apropriar, nem há, a respeito da aparência e do
impróprio, um outro objeto: é apenas a sua tomada, a sua exposição. A política
totalitária da modernidade é, ao revés, vontade de auto-apropriação total, em
que ou o impróprio (como ocorre nas democracias industriais avançadas) impõe
por toda parte o próprio domínio em uma irrefreável vontade de falsificação e
de consumo, ou (como ocorre nos Estados assim denominados totalitários), o
próprio pretende excluir de si toda impropriedade. Em ambos os casos, nessa
grotesca contrafação do rosto, depõe-se a única possibilidade verdadeiramente
humana: aquela de apropriar-se da impropriedade como tal, de expor no rosto a
própria, simples, impropriedade, de caminhar obscuramente em sua luz.
O rosto humano reproduz na sua própria estrutura a dualidade
de próprio e impróprio, de comunicação e comunicabilidade, de potência e de ato
que o constitui. Ele é formado como um fundo passivo sobre o qual brilham os
traços expressivos ativos.
Como a estrela – escreve Rosenzweig – reflete nos dois
triângulos, sobrepostos os seus elementos e a coesão dos elementos em uma
estrada, também assim os órgãos do rosto dividem-se em dois estratos. Os pontos
vitais do rosto são aqueles em que este entra em conexão com o mundo externo,
seja como receptivo ou como ativo. Segundo os órgãos receptivos, é ordenado o
estrato de fundo; por assim dizer, a pedra de toque de que o rosto é composto:
fronte e faces.[v] Às faces, pertencem as orelhas; à fronte, o nariz. Orelhas e
nariz são os órgãos da pura recepção… Sobre esse primeiro triângulo elementar,
formado ao centro pela fronte como ponto dominante do rosto inteiro e dos pontos
medianos das faces, estende-se um segundo triângulo, que é composto dos órgãos
cujo jogo expressivo anima a rígida máscara do primeiro: olhos e boca.
Na publicidade e na pornografia (sociedade de consumo) vêm,
em primeiro plano, os olhos e a boca; nos Estados totalitários (burocracia),
domina o fundo passivo (imagem inexpressiva do tirano nos escritórios). Mas
apenas o jogo recíproco dos dois planos é a vida do rosto.
Da raiz indo-européia que significa “um”, provêm, em latim,
duas formas: similis, que exprime a semelhança, e simul, que significa “ao
mesmo tempo”. Assim, próximo asimilitude (semelhança), há simultas, o fato de
estar junto (de onde, também, tem-se “rivalidade”, “inimizade”), e próximo de
similiare (assemelhar-se), há simulare (“copiar”, “imitar”, de onde, também,
tem-se “fingir”, “simular”).
O rosto não é simulacro, no sentido de qualquer coisa que
dissimula ou encobre a verdade: ele é a simultas, o estar-junto dos múltiplos
semblantes que o constituem, sem que algum desses seja mais verdadeiro que os
outros. Compreender a verdade do rosto significa tomar não a semelhança, mas a
simultaneidade dos semblantes, a inquieta potência que os mantêm juntos e os
reúne em comum.[vi] Assim, o rosto de Deus é asimultas dos semblantes humanos,
a “nossa efígie” que Dante vira no “vivo lume” do paraíso.
Meu rosto é o meu fora: um ponto de indiferença acerca de
todas as minhas propriedades, acerca disso que é próprio e do que é comum,
disso que é interno e do que é externo. No rosto, estou com todas as minhas
propriedades (o meu ser moreno, alto, pálido, orgulhoso, emotivo…), mas sem que
nenhuma delas me identifique ou me pertençam essencialmente. Ele é o limiar de
desapropriação e de desidentificação de todos os modos e de todas as qualidades
nas quais elas devêm pura comunicabilidade. Apenas onde encontro um rosto, um
fora me chega, encontro uma exterioridade.
Sede apenas vosso rosto. Andai pelo limiar. Não permaneçais o
sujeito de vossa propriedade ou faculdade, não remanesçais sob elas, mas
evadi-vos com elas, nelas, para além delas.
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