Niilismo, Política, História
Rossano
Pecoraro - UFPI/CAPES-PNPD *
Resumo:
O objetivo deste ensaio é examinar o conceito de niilismo não nos seus aspectos
teorético conceituais, mais no seu impacto no que podemos definir como
“filosofia prática”, in primis história e política. Entre os movimentos e
autores abordados estão o niilismo russo, Carl Schmitt, Walter Benjamin,
Alexandre Kojève, Arnold Gehlen, Gianni Vattimo.
Palavras-Chave:
Niilismo, Filosofia da História, Filosofia Política, Modernidade.
Desde o fim do século
XVIII o niilismo – isto é, a desvalorização e a morte do sentido, a ausência de
finalidade e de resposta ao “porquê”; a crise epocal em que os valores
tradicionais se depreciam e os princípios e critérios absolutos se dissolvem –
insinuou-se na História não apenas em sua feição teorética e filosófica, como
em seu mostrar-se no plano social e político.
Para examiná-lo esses
fenômeno um significativo ponto de partida são a cultura francesa, alemã e
russa do Ottocento. É das obras do reacionário saboiano Joseph de Maistre, por
exemplo, que o pensador católico Franz von Baader recebe o conceito de
niilismo, ao qual se dedica em dois ensaios de 1824 e 1826 (em plena época
romântica). Para ele foi o protestantismo a dar origem a um fenômeno
dissolutivo das verdades sagradas, isto é, ao “niilismo científico, destrutivo”
que o catolicismo tem de combater impondo novamente o próprio “conceito de
autoridade no sentido eclesiástico, político e científico contra todos os tipos
de dúvidas ou protestos, antigos ou novos”. Em seguida von Badeer refina a sua
visão, definindo o niilismo como “um abuso da inteligência destrutivo para a
religião”, um efeito do uso demasiado livre e desinibido da razão (neste
sentido se moverá também a crítica de Juan Donoso Cortés) que é estigmatizado
como sintoma de degeneração e desagregação do tecido civil, religioso, social.
E se na atmosfera cultural da revolução francesa o termo niilista fora utilizado
para indicar aqueles que não eram nem a favor, nem contra a insurreição (um dos
membros da Convenção, Anacharsis Cloots, afirmou no seu discurso que a “República
dos direitos do homem não é nem teísta, nem atéia; é niilista”), deve ser assinalada
aqui a definição, retomada por Krug no suplemento do seu Dicionário das ciências
filosóficas, que circulava nos ambientes francês pós-revolução na qual
nihiliste ou rienniste é aquele que não acredita em fé, seita, crença partido,
algum, “qui ne croit à rien, qui ne s’intéresse à rien”.
Ao ir além do âmbito teórico, enxertando-se no
tecido da sociedade e no debate político, o niilismo impregnou a cena cultural
russa nas últimas décadas do século XIX, agindo sobre componentes extremistas,
anárquicas e libertárias e passando a indicar um vasto movimento de rebelião
social e ideológica cujos expoentes contestavam os princípios e as ordens
existentes, principalmente os ditados pela religião e pela metafísica da
tradição. Mais rebelde e dogmático do que crítico e desiludido, o niilismo
russo renegava o passado e condenava o presente, almejando um futuro
abstratamente diverso sem possuir, porém, as forças (teóricas e práticas) para
configurá-lo como uma alternativa possível, real, positiva. Individualismo, utilitarismo
extremo, populismo radical, revolta contra o poder e a cultura dominantes: são
estes os traços marcantes dessa forma de niilismo. Entre os personagens mais
significativos devem ser destacados Nikolaj Dobroljubov, com a sua crítica ao
imobilismo russo, à nobreza indiferente, apática e conservadora e o apelo à
regeneração da sociedade
mediante a arte e a literatura (será uma das fontes às quais Lukács se
inspirará), e Dimitri Pisarev. Assumindo totalmente a definição de niilista delineada
em Pais e filhos, Pisarev e os outros colaboradores da revista “Russkoe Slovo”
pregavam um materialismo cientificista e positivista, desprezavam a arte e a religião
para exaltar o individualismo, o cálculo, a ciência, o “útil”; uma atitude que
não podia deixar de levar ao niilismo, isto é, à negação de valores, normas,
princípios estabelecidos. Neste panorama “teórico” e perante o agravamento dos
contrastes sociais e da repressão czarista, a revolta armada revolucionária
encontrou terreno fértil para a sua ação.
Um dos primeiros líderes
dos grupos subversivos é Nikolai Andreevic Isutin;
chegado a Moscou em 1863
para terminar os seus estudos funda, pouco tempo depois, a “Organização” cujos
membros se caracterizam por uma total dedicação, de cunho quase místico e
ascético, ao povo e ao ideal revolucionário. A única, grande tarefa dos
“organizadores” é construir uma rede capilar de propaganda e recrutamento para
a futura insurreição. Um grupo restrito, chamado “O inferno”, é criado para
executar atos terroristas e, principalmente, matar o Czar. União, revolução, organização
são as palavras-chave da atividade subversiva de Serguei Netchaiev, autor do
Catecismo do revolucionário, cujo “intransigente niilismo político” vincula-se,
mais uma vez, a uma posição teórica na qual se afirma a total licitude de todos
os atos cuja
execução possa levar à
completa efetivação da causa revolucionária. O extremismo de Netchaiev foi
retomado e radicalizado por Mikhail Bakunin em uma fusão incendiária de idéias
anárquicas, socialistas, utópico-libertárias. “Para vencer os inimigos do proletariado
é preciso destruir, ainda destruir, sempre destruir. Pois, o espírito destruidor
é ao mesmo tempo o espírito construtor”, repetia o revolucionário ao qual Dostoiévski
se inspirou para a criação de Stavrogin, “o anjo negro” dos Demônios, e que se
proclamava “fundador do niilismo e apóstolo da anarquia”. Rejeitando a
violência revolucionária e o extremismo de Netchaiev e Bakunin, ao quais
contrapusera a moderação, a concretude e um humanismo derivado do culto da
história e da cultura, Alexandre Herzen articulou uma forma positiva de
niilismo que
considerou – embora tenha
conseguido entrever os seus limites (a incapacidade de “propor novos
princípios”) e os seus perigos (a transformação de “idéias e fatos em puro
nada”, em “ceticismo estéril”, em “desespero que leva à inércia”) – um fenômeno
construtivo, um movimento de transformação e emancipação. O niilismo, escreveu
nas cartas A um velho companheiro (1870), “é a lógica sem estrutura, é a ciência
sem dogmas, é a incondicional obediência à experiência e a humilde aceitação de
todas as suas consequ ências,
quaisquer que sejam, desde que surgidas da observação e requeridas pela razão.
O niilismo não transforma algo em nada, mas desvela que o nada, confundido com
algo, é uma ilusão de ótica”1.
A infecção do Político. As
irrupções do nihil, a corrosão niilista da polis, dos seus princípios, da sua
soberania devem ser pensadas de uma forma teoreticamente mais incisiva e
insistente. No que diz respeito à reconstrução histórica da questão, a teologia
política de Carl Schmitt é uma peça importante. Polêmico, controvertido, objeto
de numerosas e conflitantes apropriações (dos teóricos do autoritarismo a Jacques
Derrida) a sua reflexão põe a nu os profundos liames entre a questão da legitimidade
e da soberania do Estado e o fenômeno do niilismo político. O conceito do Político,
obra de 1927, parte da constatação da crise do Estado moderno, da impossibilidade
de recorrer a princípios pré-políticos (teologia, visões de mundo, ideologias)
capazes de fundamentar e legitimar a sua soberania. Todos os valores-base se
depreciaram, perderam força, decaíram. No vazio normativo, no niilismo político
da nossa época torna-se decisivo, para individuar o fundamento do poder,
definir quem o detém, quem é o autêntico sujeito da soberania, isto é,
individuar e estabelecer “quem decide”.
O positivismo jurídico
(Kelsen e a sua Grundnorm, a norma fundamental que
funda, legitima, sustenta
o ordenamento jurídico, isto é, o Estado) ao definir o
funcionamento do conjunto
das normas esclarece apenas o “como” se deve decidir, mas não explica quem decide sobre este como,
ou seja, quem determina o funcionamento do sistema e como isto se realiza. O
positivismo pressupõe um estado de normalidade jurídica, de uma situação já
efetivada que entra em crise quando se reflete sobre o momento que precede esta
normalidade. É o “estado de exceção”, no qual não há ainda, ou não há mais,
norma alguma; é o momento da decisão fundamental, da imposição originária – de
fato do nada, ou se preferirem do infundado – das condições para que o sistema
jurídico-político possa ter força de lei. Soberano, pois, é aquele que decide
no estado de exceção.
Niilismo e Estado,
destruição dos princípios e questão da legitimação: para
Schmitt (de acordo com uma
vasta tradição de pensamento) a modernidade caracteriza-se por um poderoso
processo de secularização, no qual o fundamento teológico tradicional é
esvaziado do seu conteúdo religioso e transferido, em toda a sua vigência
legitimadora, para o pensamento político no qual assume feição metafísica (no
século XVII) e depois moral (XVIII), econômica (XIX), técnica (XX).
Servindo para todos os
fim, porém, a técnica produz niilismo; provoca a dissolução e a perda das
referências tradicionais ligadas à terra que Schmitt, em um sugestivo escrito de
1942 intitulado Terra e Mar (Land und Meer), contrapõe ao mar para refletir sobre
a história do mundo e traçar uma filosofia do devir na qual, atrás dos eventos
políticos, jurídicos, históricos, as duas potências elementares e antagônicas
operam secretamente. A técnica esgotou a terra, permitiu a conquista do mar e
está abrindo para o homem um novo espaço
de domínio, o ar. O homem dissolve, mas também espera, almeja um novo
“princípio”. A técnica, porém, não pode sê-lo; ela não se pode constituir como
fundamento, ordem, valor. O que fazer, então, nessa época em que utopia e
niilismo estão intimamente ligados? O único critério possível é a decisão soberana
que define o “conceito do Político”, que determina quem é “amigo” e quem “inimigo”;
não o inimicus, aquele que nos é hostil na esfera pessoal, nem o rival, o concorrente,
ou o adversário, mas sim o hostis, o inimigo da pátria, público, político, que
é absolutamente “outro” e que na sua irredutível alteridade tem de ser enfrentado
na luta, a única disposição estratégico-conflitual possível. Ora, o niilismo
não podia deixar de atingir a História, o horizonte das res gestae, o decurso
linear, grandioso e progressista dos destinos humanos. Neste sentido, as obras
de Cioran e Benjamin fornecem uma contribuição significativa. O olhar niilista
do Angelus Novus desmascara o verdadeiro vulto dos fatos humanos; revela que as
vitórias foram massacres; as ideologias, pretextos; o progresso, terror e
queda; a História, cruento cortejo dos vencedores. Nas Teses sobre a filosofia
da história Benjamin dissolve as ingênuas e cegas pretensões de uma visão
determinista e evolucionista das res gestae, cujo ponto central é a idéia do
caráter inevitável e positivo do
progresso e a de um tempo homogêneo, vazio, linear. A este desmascaramento-dissolução
segue a re-apropriação: é possível e necessário contar a história de outra
forma, e dar-lhe um outro sentido. A tarefa do historiador materialista é a de
elaborar um novo conceito de tempo, o “tempo de agora” (Jetztzeit),
explicitamente inspirado na tradição judaica. A reivindicação benjaminiana do
aspecto messiânico da história, a fundação de uma concepção descontínua do tempo,
de uma temporalidade intensiva, torna-se, portanto, o lugar privilegiado de uma
nova esperança, da utopia de um resgate do passado e da possibilidade de um outro
sentido confiada às gerações de um futuro por vir.
O niilismo corrói a tensão
entre história e utopia, tradição e revolução, passado
e futuro. Relativismo,
ceticismo, pessimismo, a “agonia do final” debilitam e esgotam o devir. Em
outras palavras: se o niilismo contemporâneo conseguiu esclarecer a marteladas
que a história não tem uma finalidade nem um sentido nem uma “vigência” universal, que as utopias do
progresso, da legitimação, da totalidade e do absoluto devem ser denunciadas e
rejeitadas, que não há mais horizontes únicos e estáveis de significação, então
a história está morta e, usando a famosa definição de Jean-François Lyotard, os
seus grands récits 2[1], os seus metarelatos
(iluminismo, idealismo, marxismo) sepultados. Irrompem em cena diagnósticos
críticos do presente, aparentemente crepusculares, que se encarregam de
descrever a nossa época sob o signo do “fim da história” ou da “pós-história”.
Estes conceitos, já bastantes desgastados, muitas vezes considerados sinônimos
ou misturados, foram utilizados por teóricos de direita e de esquerda e
torcidos para diferentes fins. Entre eles devem ser lembrados Alexandre Kojève,
cujos seminários parisienses (1933-1939) concentrados no momento da
negatividade na Fenomenologia do espírito de Hegel marcaram uma inteira geração
de pensadores, e Arnold Gehlen.
Como já aconteceu em Kant
(o signo da revolução), Kojève procura no devir
concreto dos
acontecimentos humanos as bases do seu “fim da História”. O signo é dúplice, no
sentido que se divide em dois momentos. O primeiro mostra-se quando ele entrevê
na revolução de 1917 e na ação de Stalin o fim da História. O segundo, quecomeça
a tomar forma depois da Segunda Guerra, encarna-se no abrupto abandono de
Stalin, “o Napoleão do marxismo” e na sucessiva conversão ao Napoleão
autêntico, o grande vencedor da batalha de Iena, cuja importância já havia sido
sublinhada por Hegel: “eu errei – explica Kojève em uma entrevista (1968)
publicada na Quinzaine littéraire –, Hegel estava certo quando viu no ano 1806
a data do fim da história”. A vitória, o evento de Iena, torna-se, portanto, o
símbolo alegórico da inevitável e inabalável (para Kojéve) afirmação dos
valores democráticos da Revolução francesa nos quais o Estado pode fundar-se e
legitimar-se, em escala universal, como entidade que, superando e conciliando
dialeticamente as contradições, os conflitos, as oposições, ergue-se-rá como o
assassino da história, como o “espaço” dentro do qual se esgota toda
possibilidade história.
A partir do fim dos anos cinqüenta, Kojève muda
o foco do seu interesse; a sua análise re-molda, adapta o próprio centro messiânico,
já indefensável, ao novo cenário internacional. O fim da história, agora, realiza-se
na plena universalização da democracia liberal, capitalista e baseada no livre-mercado,
que se encarna nas instituições políticas e econômicas dos Estados Unidos. A
american way of life é “a maneira de vida própria da época post-histórica, já que
a atual presença dos Estados Unidos no mundo prefigura o futuro ‘eterno
presente’ da humanidade
entendida na sua globalidade” escreveu na Introduction à lecture de Hegel.
Francis Fukuyama,
cientista político norte-americano que se tornara internacionalmente conhecido,
e criticado, pelas suas teses sobre o fim da História expostas depois da queda
do muro de Berlim, utilizou incisivamente as ideias kojevianas e hegelianas. A
tese fundamental de Fukuyama, exposta no ensaio de 1989 O fim da História?, é
notória: a dissolução dos regimes comunistas nos países do Leste Europeu demonstra
que não é mais possível pensar em outras instituições que não sejam as da sociedade
atual, liberal-democrática, industrial e capitalista. As exceções (a do mundo islâmico
é uma dessas) e as resistências a este processo são liquidadas como um acidente
de percurso que não teria a força nem o consenso nem os instrumentos para desviar
ou impedir o fim da história, isto é, o equilíbrio e a “administração” do que
já se possui, do que já foi alcançado ao término do violento, mas esclarecido
caminho da modernidade. Em um artigo publicado poucas semanas depois dos
atentados terroristas e niilistas (não foram poucos os intelectuais que usaram
os dois termos juntos, equiparando, de fato, mais uma vez, o terror e o nihil)
de 11 de Setembro Fukuyama, respondendo às críticas, explicou: “Permanecemos no
fim da História porque há somente um sistema que continuará a dominar as
políticas mundiais, o do Ocidente liberal e democrático. Isto não implica um
mundo sem conflitos ou o desaparecimento da cultura como característica
distintiva das sociedades. O conflito que enfrentamos, porém, não é o embate
entre várias culturas, iguais e distintas, em luta entre elas, como as grandes
potências da Europa do século XIX. O embate, hoje, consiste em uma série de
ações de retaguarda da parte de uma sociedade [a dos regimes islâmicos] cuja
tradicional existência é, na realidade, ameaçada pela modernização. A força da
reação reflete a severidade de uma tal ameaça. Mas tempo e recursos estão ao
lado da modernidade[4].
Retomando e reelaborando
idéias já presentes em Hendrik de Man e, antes
dele, em Bertrand de
Jouvenel e Agustin Cournot, o sociólogo alemão Arnold Gehlen fala
explicitamente de um fim da história e de uma pós-história, principalmente nos ensaios
A secularização do progresso (1967), Fim da história? (1974), A cristalização cultural
(1961). Ao devir como progresso, desenvolvimento, dinâmica é contraposto um
estado permanente de rotina, no qual será impossível operar transformações, produzir
novas visões de mundo e que se assistirá à mera sobrevivência de esferas diferentes
de atividades. O movimento da civilização tecnológico-industrial, malgrado oscilações,
avanços e recuos, levou a um “estado de motilidade perpétua” em que tudo se
reproduz e se repete incessantemente: é a “estase da história”, é o seu fim, o seu
“pós”.
Não há mais forças
(filosofia, arte, religião) capazes de construir uma nova imagem de mundo; a
civilização alcançou um estágio de cristalização cultural, de substancial
paralisia. Na tentativa de esclarecer e dar plena dignidade filosófica ao conceito
de pós-modernidade, Vattimo reformula as idéias de Gehlen. Na pós-história tudo
tende a nivelar-se no plano da contemporaneidade e da simultaneidade; ela indica
“a condição em que ‘o progresso se torna rotina’: as capacidades humanas de dispor
tecnicamente da natureza se intensificaram, e continuam intensificando-se, a tal
ponto que, enquanto novos resultados sempre se tornarão alcançáveis, a capacidade
de disposição e de planejamento os tornará cada vez menos ‘novos’. Já agora, na sociedade de consumo, a contínua
renovação (das roupas, dos utensílios, dos
edifícios) é
fisiologicamente requerida para a pura e simples sobrevivência do sistema; a
novidade nada tem de ‘revolucionário’ e perturbador, ela é o que permite que as coisas prossigam do mesmo modo
Rumo ao término do
capítulo, é preciso examinar de um modo mais específico
alguns pontos da reflexão
de Gianni Vattimo, em que se condensam os efeitos mais significativos e
originais de um “paradigma” niilista aplicado à (filosofia) política. Antes de
tudo, a hermenêutica; uma posição filosófica cuja analogia com os problemas da democracia
e da esquerda – em virtude das duas características principais que a determinam
(definitivo afastamento do fundacionalismo metafísico e visão do mundo como
conflito de interpretações) – não é acidental. Ao contrário: é a hermenêutica, quase sempre usada como sinônimo de
niilismo (obviamente o niilismo consumado, perfeito de que fala Nietzsche), que
pode oferecer à esquerda um solo teórico de referência para a sua ação de
crítica da ordem política existente sempre atravessada, de resto, pela necessidade
de se referir a algo que não fosse a mera efetividade. Em Hermenêutica e
democracia (1994) o filósofo esclarece e precisa a sua posição: os traços
caracterizadores da hermenêutica podem ser usados também para descrever o que
acontece “nas democracias avançadas na atmosfera babélica da sociedade de mercado
e no correlativo afirmar-se de identidade e pertencimento a comunidades naturais restritas – etnias, famílias,
seitas, etc. – que tendem a explodir fora de todo controle e toda coordenação
possível, produzindo fenômenos de dissolução do vínculo social”. Nietzschianamente: a liberação da
pluralidade de interpretações e das visões
de mundo carrega
intrinsecamente consigo uma tendência dissolutiva da coesão social. À caracterização
da hermenêutica, porém, falta um terceiro, fundamental elemento que ficará mais
claro se nos lembrarmos da fabulação do “mundo verdadeiro” que leva
também ao desaparecimento do “mundo aparente”: o antifundacionalismo da
hermenêutica é, também ele, apenas uma interpretação e não “a constatação de uma
estrutura ‘objetivamente’ multíplice da ‘realidade’”; isto significa que ela, como
todas as interpretações, deverá articular-se, explicar-se,argumentar e não só para
justificar os seus conteúdos, mas, antes de tudo e principalmente, justificar
o próprio estatuto de interpretação sem exibir
fundamentos
ou verdades. Em outros
termos, mais lyotardianos: “o ‘fim’ dos metarelatos não deve ser visto (como
parece acontecer no próprio Lyotard) como a descoberta de uma verdadeira
estrutura do ser que excluiria os metarelatos; ao contrário, é preciso que ele
se apresente como o efeito de um processo histórico do qual oferece uma precisa
leitura”[7], a hermenêutica, em suma,
como efeito de um processo niilista de consumição do ser metafísico, isto é, da
violência. Mas como esse cenário teórico pode ajudar a repensar as razões (e as
ações) políticas da esquerda?
Antes de tudo é preciso
destacar o fato de que foram as filosofias da história,
os grands récits do iluminismo, marxismo e positivismo, a inspirá-la,
e não argumentos metafísicos. Reivindicar direitos com base em valores
naturais, como posições políticas revolucionárias já fizeram, não é mais
possível já que por um lado a referência à natureza, às essências, às
diferenças e às igualdades se tornou explícito patrimônio das forças de
direita; por outro, não se pode mais prescindir de uma crítica das ideologias que
revele o caráter autoritário e violento da fundação de direitos e deveres em pretensas
essências metafísicas. Reconhece-se uma forte afinidade entre hermenêutica e
esquerda; aquela retoma a tradição desta que sempre reconheceu ao decurso
histórico uma carga potencialmente emancipativa; diante da dissolução dos metarelatos,
porém, a esquerda não soube oferecer uma interpretação diferente do devir,
perdendo credibilidade e escondendo-se atrás de uma “genérica apologia do
pluralismo” inconcludente
e vazia, que não tem nada a dizer “na situação em que a democracia parece
resolver-se na polaridade entre a cultura do supermercado e as identidades
parciais vividas com furor fundamentalista” [8].
Traços concretos desse
cenário teórico: uma “esquerda niilista” não poderá
fundar as suas
reivindicações na tese metafísica da igualdade (que pretende pôr-se como idéia
forte, capaz de revelar uma essência humana dada uma vez por todas, etc.), mas
deverá apoiar-se no princípio da dissolução da violência, compreendida como
afirmação peremptória última que, assim como qualquer fundamento metafísico-religioso,
não admite interrogações ulteriores sobre o porquê, interrompe o diálogo,
silencia. O argumento da igualdade (“que não é um fato natural, mas o seu oposto”;
uma esquerda de projeto deverá corrigir com “leis adequadas as desigualdades
naturais, isto é de nascença”, isto é, priorizar as “condições de partida e não
os resultados”[9]),
de resto, demonstra-se praticamente ineficaz ao contrapor-se ao valor-chave da
nova direita, isto é, a exaltação da concorrência em todos os níveis da sociedade
como única garantia de crescimento e desenvolvimento. O princípio da dissolução
(ou da redução) da violência é, ainda, o único capaz de doar novamente a palavra
à esquerda sobre fenômenos essências das sociedades industriais avançadas: a
cultura do supermercado e
os fundamentalismos reativos. Às ameaças do fundamentalismo a esquerda, uma vez
abandonada pela grande narração marxista, soube opor tão-somente, segundo
Vattimo, a defesa do pluralismo fundada no direito à igualdade. Uma posição
vigilante e crítica, mas incapaz de formular propostas e alternativas
concretas; pode parecer paradoxal, conclui o filósofo italiano, “mas somente a
adoção de uma perspectiva niilista pode dar à esquerda a capacidade de olhar de
uma maneira não simplesmente defensiva e reativa a fantasmagoria do mundo
pós-moderno”[10]
e de recuperar aquelas “dimensões utópicas” dos anos sessenta (Deleuze e
Guattari, Marcuse) que a esquerda européia excluiu, talvez com alguma razão,
mas sem refletir muito, do seu breviário de idéias.
Em novembro de 2002, por
ocasião da entrega do “Prémio Hannah Arendt para o pensamento político”,
Vattimo profere uma longa conferência intitulada Globalização e atualidade do
socialismo. Um terceiro pólo – o populismo – é essencial na economia da lectio
que se abre justamente com a análise da “conexão causal” entre o processo de
globalização e o “anarquismo endêmico” representado pelo populismo no global,
que se manifesta como a única forma possível de resistência (raramente não violenta).
A globalização nada mais é do que a redução da política à economia, ou, para
usar as palavras de Habermas, a colonização do mundo da vida pela pura racionalidade estratégica. Este é o núcleo
da reflexão de Vattimo, que acrescenta: a
única ordem internacional existente não é uma estrutura política, mas
econômica. Neste sentido, pensa-se
que o único remédio à difusão da violência populista, cujos elementos se
rebelam desordenadamente contra o império da pura economia, seja a formação de
uma ordem política alternativa, igualmente integrada e globalizada.
Tratar-se-ia, em suma, de
idealizar, construir, organizar uma globalização política capaz de contrastar
eficaz e efetivamente a “ideologia do Fundo Monetário Internacional” e o monopólio norte-americano. A pergunta é:
uma entidade deste tipo teria alguma esperança
de funcionar? A resposta populista – “que retoma e exprime muitos dos motivos de revolta presentes no anarquismo e
na indisciplina social difusa, move-se ainda
no horizonte da herança marxista e da sua idéia de uma revolução do proletariado
mundial capaz de instaurar uma nova ordem, justa e humana. Foi formulada por último, em termos atualizados,
por Michael Hardt e Antonio Negri no livro Império”[11] – é descartada porque não
se põe o problema do depois, da nova ordem que deveria seguir à revolução das
multidões; por se limitar a uma apologia da “revolução permanente” e pela
conseguinte falta de um projeto político-institucional.
A resposta federalista,
que tem como pano de fundo o pensamento de Hannah Arendt, revela-se mais
adequada para responder negativamente àquela pergunta e para se pensar o que
está em jogo: a globalização econômica não se combate com uma globalização política, com uma política
globalizada que acabaria por perder os traços
da política autêntica, tenderia a cancelar (ou destruir) as diferenças e o
almejo de uma “sociedade vivível”. Ao
contrário: é preciso resgatar a autonomia da política, libertá-la da economia e
da esmagadora lógica do capitalismo; mas restaurar a autonomia da política nada mais é do que
recuperar a substância ainda viva e atual da
mensagem socialista. Não, como é óbvio, o socialismo “real”,
“ideológico”, metafísico, violento que desapareceu com a queda dos regimes do
leste europeu, mas sim um socialismo niilista, capaz de preservar a autonomia e
a dignidade da política, garantir o equilíbrio
das diferenças, respeitar a multiplicidade. É necessário que se efetive a passagem do liberalismo à democracia e, para
Vattimo, ao socialismo: “para realizar de
verdade os direitos de liberdade pregados pelo liberalismo é preciso não
deixar que as coisas andem ‘conforme os
próprios princípios’ (há um inaceitável naturalismo de Adam Smith!), por
exemplo as leis de mercado, mas sim construir condições de igualdade que, ao
invés, não são dadas ‘naturalmente’”[12].
* Rossano
Pecoraro – Doutor em Filosofia – PUC RIO - UFPI/CAPES-PNPD
Texto extraído de : Pensando
– Revista de Filosofia Vol. 1, Nº 1, 2010 ISSN 2178-843X
[1]
2 LYOTARD, J.F. A
condição pós-moderna, José Olympio, Rio de Janeiro, 1998.
[4] FUKUYAMA, F. O fim da História depois de 11 de setembro. O artigo
foi publicado em “The Wall Street
Journal” e, em italiano, em “La Repubblica” de 19 de outubro de
2001.
[8] Ibid., p. 104
[9]
VATTIMO, G. “Sinistra di progetto” (texto de 1999), in: Nichilismo
e emancipazione, op. cit., p. 111.
[11]
VATTIMO, G. “Globalizzazione e attualità del socialismo”, in:
Nichilismo e emancipazione, op. cit., p.125.
Apesar de ser um texto relativamente extenso para postar no Blog, o fizemos por ser um tema que é muito caro, o niilismo. Além de que o autor tem obras e teses sobre o assunto, o que o credencia de maneira inquestionável.
ResponderExcluirEis aí a pura e profunda realidade sociológica e filosófica: Com a “Copa das Copas®” do
ResponderExcluirPT®, em vez de se construir hospitais, construiu-se prédios inúteis!
A Copa das Copas®, do PT© e de lula©. Sempre se utiliza de propaganda, narrativas e publicidades sofisticadas e bem feitas para enganar e praticar lavagem-cerebral nos meios de comunicação. Não se desenvolve a imaginação.
O pessoal de nossas escolas precisa de Machado de Assis. Villa-Lobos. Drummond. Kafka. Graça Aranha, Aluísio de Azevedo, do Maranhão.
O que precisamos de mais no Brasil é de escolas. E das boas: de qualidade.
As escolas EaD, à distância (atual, devido a pandemia) são péssimas.
Não se aprende bem. O que mais o Brasil precisa na real e atualmente é de alta literatura. Alta cultura. Mas escolas sobretudo. O PT é barango. O Kitsch político contemporâneo.