Deus e a gramática - Aforismo 5
Nietzsche - Crepúsculo dos Ídolos
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Vejamos em contraposição de que modo diverso nós (- digo nós por cortesia...)
consideramos o problema do erro e da aparência. Outrora tomava-se a
transformação, a mudança, o vir-a-ser em geral como prova da aparência, como um
sinal de que algo tinha se apresentado que necessariamente nos conduzia ao
erro. Hoje, ao contrário, vemos até que ponto o fato de o preconceito da razão
nos obrigar a fixar a unidade, a identidade, a duração, a substância, a causa,
a coisidade, o Ser, nos enreda de certa maneira no erro, nos leva necessariamente
ao erro. Assim,
estamos certos de que, sobre a base de uma verificação rigorosa junto a nós
mesmos quanto a esse ponto, o erro está aí. O que se passa aqui, portanto, não
é diverso do que acontece com os movimentos dos grandes astros: no que concerte
a eles, os nossos olhos são os advogados contínuos do erro; no que concerne ao
preconceito da razão, é nossa linguagem. Segundo
seu aparecimento, a linguagem pertence ao tempo da forma mais rudimentar de psicologia.
Inserimo-nos em um fetichismo grosseiro quando trazemos à consciência os
pressupostos fundamentais da linguagem metafísica: ou, em alemão, da razão.
Esse fetichismo vê por toda parte agentes e ações; ele crê na
vontade enquanto causa em geral; ele crê no "Eu", no Eu enquanto Ser,
no Eu enquanto Substância, e projeta essa
crença no Eu-substância para todas as coisas. - Só a partir daí a consciência
cria então o conceito "coisa"... Por toda parte, o Ser é introduzido
através do pensamento, imputado como
causa. Somente a partir da concepção do "Eu" segue, enquanto
derivado, o conceito "Ser"... No começo encontra-se a grande
imposição do erro: a assunção de que a vontade é algo que atua
- de que a vontade é uma faculdade...
Hoje sabemos que ela é meramente uma palavra... Muito mais tarde, em um mundo
milhões de vezes mais esclarecido, veio com espanto à consciência dos filósofos
a segurança, a certeza
subjetiva na manipulação das categorias da razão. Eles
concluíram que elas não poderiam provir da empiria - toda a empiria já se
encontra para eles em contradição. De onde elas
provém então? - E na índia, tanto quanto na Grécia,
cometeu-se o mesmo engano: "é preciso que já tenhamos estado ao menos uma
vez em um mundo mais elevado (ao invés de em
um muito inferior: o que teria sido a verdade!) e que aí
tenhamos nos sentido em casa. É preciso que tenhamos sido divinos,
pois temos a razão!" De fato, nada teve até aqui um poder de
convencimento mais ingênuo do que o erro do Ser - tal como foi formulado, por
exemplo, pelos eleatas: pois ele abarca toda e qualquer palavra, toda e
qualquer frase, que pronunciamos! - Também os oponentes dos eleatas sucumbiram
à sedução de seu conceito de Ser: Demócrito entre outros, quando inventou seu átomo...
A “razão” na linguagem: oh! mas que velha matrona enganadora! Eu temo que não
venhamos a nos ver livres de Deus porque ainda acreditamos na gramática...
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