Martin Heidegger e a técnica







Franklin Leopoldo e Silva


Em “A questão da técnica”, Heidegger pretende interrogar a técnica acerca de sua própria essência. Nessa interrogação, a técnica será tomada como questão, o que já antecipadamente elimina algumas possibilidades, tais como investigação e definição.
Com efeito, a técnica não será tomada como objeto cuja investigação nos levaria possivelmente a uma essência; tampouco a técnica será submetida a um processo de conhecimento objetivo ao cabo do qual se poderia defini-la. Em outras palavras, não se pretende chegar a qualquer resultado que forneça uma representação da técnica. O que será feito só se pode enunciar, a princípio, negativamente: trata-se de afastar algumas concepções habituais que se consolidaram como visões da técnica, para com isso liberar a
sua essência. Isso não significa que, com esse procedimento, nos apropriaremos da essência da técnica; apenas nos colocaremos na posição em que seria possível pensá-la eventualmente para além das dimensões metafísica e epistemológica. Isso se faz necessário para que possamos superar um viés exclusivamente humanista segundo o qual a técnica tem sido representada.
Nesse sentido, cabe de início explorar criticamente a concepção da técnica como agenciamento de meios para a consecução de fins, o que é feito a partir de uma elucidação do sentido grego daquilo que herdamos como a teoria causal. Entendemos normalmente as quatro causas definidas por Aristóteles como possuindo um sentido operatório, razão pela qual a ênfase recai sempre sobre a causa eficiente, que estaria mais propriamente ligada à efetuação ou produção de efeitos. Assim se constrói uma determinação instrumental da causalidade. Ora, a compreensão heidegeriana, a partir do significado propriamente grego de causa, caminha em uma outra direção, em que a relação operatória de efetuação é substituída pela de comprometimento. As quatro causas devem ser vistas como comprometimento com a produção da coisa. Assim, quando digo que a causa material corresponde à matéria de que algo é feito, o que se quer dizer na verdade é que há uma espécie de compromisso entre uma certa matéria e a produção do objeto; quando falo em causa final, quero dizer que há uma espécie de compromisso entre a produção da coisa e a finalidade a que deverá servir. Com isso supera-se a idéia de que se trata apenas de fazer algo, a partir de alguma coisa, para um certo fim. Na articulação das quatro causas, algo se mostra na sua matéria, na sua produção e na sua finalidade. Algo se desabriga desvelando-se no seu modo de ser. E aquilo que tendíamos a entender como operação revela-se um deixar acontecer, o ocasionamento ou o que vem a aparecer.
Tanto é assim que, no plano do acontecer natural, o que vem a aparecer depende
da natureza como poiesis, no caso a auto-produção natural que não poderia ser entendida como uma operação de fazer. A diferença é que, quando algo é tecnicamente produzido, esse deixar aparecer ocorre por intermédio da técnica e do técnico, e não por meio de um processo “natural”. Mas de qualquer modo trata-se de um desocultamento, de um deixar vir à luz: acontecimento ou aparecimento. Vê-se então o que teria de reducionista a interpretação em termos de relação entre meios e fins, no sentido estritamente instrumental. Isso nos leva a observar a relação que existe entre poiesis, techné, episteme e verdade no sentido de desocultamento – alethéia. A poiesis “natural” é produção no sentido em que o termo se aplica, por exemplo, ao florescimento da flor; a techné é produção na qual intervém a técnica, como quando o artesão fabrica um vaso; a episteme é o conhecimento dessa produção – “natural” ou “técnica” – que pode afastar-se dessa mesma produção em direção a outros níveis de compreensão. Temos aí três “casos” de desocultamento ou, mais precisamente, três modos de alethéia. Com isso, e do ponto de vista do que está sendo abordado no texto, chegamos à relação entre técnica e verdade. O aparente desvio e a ampliação do problema são coerentes com o questionamento heidegeriano: era preciso liberar a interrogação da concepção de técnica como ajustamento de meios e fins, isto é, da perspectiva puramente instrumental, para
trazer à reflexão a relação entre produção e desocultamento, entre poiesis e alethéia.
Era preciso também vislumbrar uma relação entre técnica e verdade em que esta não permanecesse aprisionada no âmbito semântico delimitado pela verificação (da veritas) e pela “exatidão da representação”.
No entanto, é preciso mostrar ainda que essa compreensão da técnica, de matriz grega, continua valendo para a técnica na sua acepção moderna, isto é, na relação que mantém como a ciência experimental. Assim, ao entendimento de techné como poiesis será acrescida a compreensão da técnica como um requerer da natureza aquilo que será utilizado e consumido por via de um outro modo de intervenção humana. Com efeito, há uma diferença entre o moinho de vento, a ponte de madeira sobre o rio, a semeadura e a colheita destinadas à sobrevivência do camponês, o guarda florestal que percorre as trilhas entre as árvores, de um lado, e a usina hidroelétrica, a agroindústria e a indústria madeireira, de outro. No primeiro caso, dir-se-ia que há uma espécie de continuidade entre a produção natural e a interferência humana. O moinho de vento significa: deixar que aconteça o movimento do vento sobre o movimento das pás; a semeadura
e a colheita significam: deixar acontecer o processo natural das estações; a ponte de
madeira significa a primazia do rio a ser transposto; o guarda florestal significa o guardador das árvores. No segundo caso, o vento, o rio, a floresta, a terra significam reserva de energia a ser extraída, processada e consumida. Desse ponto de vista, árvore é madeira e carvão; rio é possibilidade de acionar turbinas; ponte é possibilidade de transportar mercadorias.
Dada essa diferença, como se pode dizer que a compreensão da técnica de matriz grega (trabalho do artesão) seria ainda válida na modernidade? A continuidade está na noção de desocultamento: para o homem moderno, que requer das coisas a satisfação de suas necessidades naturais e instituídas, desocultar é tirar proveito: desabrigar a partir do critério da utilização. Por isso, o rio é a representação da pressão da água nas turbinas e a árvore é a representação industrial da madeira e do combustível. Entretanto, trata-se ainda de um modo de desocultar, que já não se ordena pela poiesis, mas por aquilo que é requerido pela transformação técnica. O caráter instrumental existe com certeza, mas antes dele há de se considerar um certo modo de habitar o mundo do qual a instrumentalidade é conseqüência. Nesse sentido, Heidegger diz que, para a técnica moderna, não é a usina que está no rio, mas o rio que está na usina. Ainda assim, a
ênfase na construção humana, que nesse caso atinge níveis espetaculares, deve supor a anterioridade da estadia do homem em meio às coisas, o que é necessário para que ele as desvele no modo do seu proveito e da exploração em grande escala. A instrumentalidade, mesmo nesse caso, é derivada de um certo modo de alethéia.
Esse modo tem tudo a ver com a representação moderna da verdade e, assim, com a ciência experimental. Na imagem moderna do mundo, a natureza aparece como complexo de forças passível de ser calculado. Cálculo e experiência são maneiras de fazer com que a natureza “se anuncie” como uma totalidade assim concebida. Nesse caso, não seria correto dizer que a técnica moderna deriva da ciência experimental ou
que as máquinas que o homem é capaz de fabricar somente se tornaram possíveis após a concepção moderna de conhecimento científico? Não seria a técnica nesse caso mera aplicação? Heidegger alerta para o fato de que nem sempre a cronologia histórica coincide com a verdade em seu caráter essencial. Com certeza a técnica moderna é uma manifestação posterior à ciência experimental. Mas em um sentido não meramente cronológico de história, a técnica está profundamente entranhada na própria essência da ciência moderna como seu destino. Assim, o que se manifesta posteriormente é, na verdade, primordial. A técnica não deve, pois, ser vista como uma aplicação eventual da ciência; à natureza como complexo de forças passível de ser calculado corresponde a disponibilidade do ente para a dominação e a utilização. Dizer, pois, que a técnica já está posta no próprio núcleo essencial da ciência moderna é um passo a mais na direção da
compreensão da essência da técnica, porque essa conjunção corresponde a um apelo da época, que o homem deve atender e através do qual visa justificar a sua posição histórica. O modo peculiar de desabrigamento que está envolvido na técnica moderna corresponde ao destino que o homem deve cumprir.
O que significa essa disponibilidade do ente como forma de presença perante a qual também o homem se faz disponível para requerer da natureza a satisfação de suas necessidades por via da transformação técnica? A palavra alemã usada por Heidegger pode ser traduzida como “armação”. Uma estante tem uma “armação” que não se confunde com suas prateleiras ou com seus parafusos. Toda estrutura possui uma “armação” pela qual ela permanece, precisamente enquanto essa armação está para além de
todos os elementos da estrutura. A armação, portanto, reúne os elementos e, de alguma forma, sustenta-os sem se confundir com qualquer um deles – atravessando-os a todos, se assim se pode dizer. A cordilheira reúne “originariamente” a seqüência de montanhas e as “atravessa”. Esses exemplos visam aproximar-nos de uma idéia extremamente difícil de ser definida: o próprio Heidegger assinala que a palavra está sendo usada em um sentido “completamente incomum”.
Destaquemos dois aspectos importantes. “Armação” refere-se ao modo próprio
de desocultar que corresponde à essência da técnica moderna. E armação refere-se também a algo que nada tem de técnico. Isso quer dizer que, se examinássemos a técnica em todos os seus elementos e eventualmente viéssemos a conhecer todos eles, ainda assim a essência da técnica permaneceria oculta. Pois conhecer a técnica como trabalho, instrumento ou meio equivale a visar as determinações antropológicas que nela estão contidas, mas que não revelam sua essência. Desviando-se dessa representação
humanista, Heidegger pretende atingir o modo como na “armação” acontece o “descobrimento” pelo qual o homem é provocado a desabrigar o ente de um modo peculiar que corresponde, como já vimos, à consideração da natureza como um reservatório de energias que ele pode utilizar. A “armação” seria, assim (ainda aproximadamente), a própria disponibilidade, ou a reunião “originária” dos elementos disponíveis, pela qual os entes se apresentam para o homem através da representação calculante da ciência. Disso deriva, aliás, a impressão de que a técnica moderna seria ciência aplicada. A relação entre desocultamento e disponibilidade indica, assim, o modo específico pelo qual o homem experimenta a técnica e experimenta-se nela. Que isso seja o cumprimento de um destino é algo que não anula a liberdade humana, que deve ser
compreendida tanto como o destino que se oferece ao homem quanto como o modo pelo qual o homem se oferece a esse destino. Nessa dupla relação reside o perigo da técnica. Digamos, a propósito, que Heidegger não faz coro com aqueles que vêem na técnica a perda do humano ou sua inevitável alienação. Não se trata propriamente de julgar a técnica, mas sim de compreendê-la em sua essência como modo de desvelamento. Entretanto, a disponibilidade do ente como “forma” geral da técnica pode incidir na relação entre o homem e a técnica, fazendo-o incluir-se inteiramente entre os entes disponíveis – perdendo assim a sua diferença. É notável que Heidegger sublinhe que isso pode acontecer justamente quando o homem se investe da condição de senhor e dominador da terra pela via da técnica. Quanto mais esse senhorio for valorizado, mais o homem será uma simples peça do esquema da disponibilidade. O homem não mantém autonomia em relação à disponibilidade técnica fazendo-se “sujeito” da técnica. Pelo contrário, essa atitude indicaria antes submissão e impotência. A técnica é um destino que se oferece ao homem – e ele deve cumpri-lo. Mas se não compreender esse destino e se ignorar esse apelo, submergirá no domínio da técnica. Para que isso não ocorra, é preciso ouvir o apelo e compreender o destino. Por paradoxal que possa parecer, esse consentimento é liberdade.
Esse paradoxo também se explica pela recusa do humanismo. O fato de que os entes estão disponíveis para o homem não significa que ele os tornou disponíveis. A disponibilidade é um advento histórico que está inserido nos modos de desvelamento que se apresentam ao homem na sua relação com o ser. A condição humana somente se torna compreensível nessa relação, o que significa que o homem não é fechado em si mesmo, mas se define pela sua abertura ao ser. Sendo a técnica um modo de desvelamento, ela como que se apresenta ao homem como modo de ser. Poderíamos dizer que o homem não é senhor da técnica, mas pode ser senhor da sua relação com a técnica.
Ao evitar uma perspectiva exclusivamente antropológica, o homem torna-se mais fiel a sua própria condição; ou seja, somente se não considerar a técnica como algo inteiramente do domínio do humano pode o homem conservar alguma autonomia perante a própria técnica.
É essa compreensão do caráter ontológico-histórico da técnica e do homem como técnico que pode fazer com que no perigo resida também a salvação, como assinala Heidegger citando os versos de Hölderlin. “Salvação”, nesse caso, pouco tem a ver com os perigos do desenvolvimento tecnológico e o seu potencial destruidor. Se a técnica é o modo de desvelar o ser e habitar o mundo – o modo de existir – e se nossas maneiras de pensar e agir são dependentes da técnica, isso significa que é inevitável que haja uma espécie de governo técnico do mundo e a isso não nos podemos furtar. Entretanto, essa mesma compreensão abre possibilidades de um outro modo de pensar, que não recuse a técnica, que não alimente nostalgias, mas que faça da técnica que nos domina uma questão a ser enfrentada com a liberdade possível. Note-se que a liberdade perante a técnica concerne substancialmente à compreensão da constituição histórica
da relação que o homem mantém com os outros entes e com o ser – o que vem a ser algo como a compreensão de si mesmo. Daí a importância de uma releitura das origens: os aspectos matriciais da experiência grega da técnica. Assim, podemos concluir que o itinerário do texto configura uma meditação cuja finalidade seria fazer-nos compreender algo que, por estar tão próximo, está ao mesmo tempo tão longe, a ponto de tornar-se incompreensível. Para reencontrarmos a experiência daquilo que nos constitui é necessário despojar-nos das mediações construídas ao longo do processo de subjetivação dos fundamentos e de objetivação científica e técnica da realidade.


Franklin Leopoldo e Silva
Professor Titular do Departamento de Filosofia,
Universidade de São Paulo, Brasil.
franklin@usp.br


Indicações bibliográficas
Courtine, F. De l’herméneutique de la facticité à la métaphysique du Dasein. Paris: Vrin, 1996.
Dubois, C. Heidegger. Introdução a uma leitura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
Haar, M. Heidegger et l’essence de l’homme. Paris: Millon, 1990.
Inwood, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
Stein, E. Introdução ao pensamento de Heidegger. Porto Alegre: Editora da PUC-RS, 2002.
Vattimo, G. Introdution à Heidegger. Paris: Editions du Cerf, 1985.

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