O TIO*





Ari Monteiro





Roque Bandeira não ignora que na cidade é conhecido como o Batráquio, o Cabeçudo, o Sapo-Boi... De todas as alcunhas que lhe puseram, uma há que lhe é grata ao coração, e que ele aceita como uma espécie de título honorífico. Floriano tinha nove anos e testemunhou a cena em que o cognome nasceu. Foi em 1920, quando Bandeira começava a freqüentar o Sobrado. Numa noite de inverno, à hora em que as crianças diziam "boa noite" às visitas, antes de subirem para os seus quartos, Bandeira estendeu os braços para Jango e convidou: "Venha com o titio". Sem pestanejar Maria Valéria exclamou: "Vá com o tio Bicho!" A frase pareceu escapar-lhe espontânea da boca, como se a velha tivesse pensado em voz alta. Fez-se um silêncio de constrangimento. Rodrigo fechou a cara e lançou um olhar de censura para a tia. Roque Bandeira, porém, desatou a rir: "Mas é um grande achado! - disse. - Faço questão de que daqui por diante estes meninos me chamem tio Bicho!” (ÉRICO VERÍSSIMO – Tempo e o vento – O Arquipélago Vol. I)

Um personagem da obra de Érico Veríssimo, O tempo e o Vento, O tio Sapo ou Tio Bicho que lhe impigiram como alcunha , veio me  fazer companhia. Tio Bicho era o intelectual  do Continente, de esquerda ou anarquista, não me lembro bem, mas apenas o nome não define ou conceitua algo ou alguém, os nominalistas  erraram feio e sabemos disso e é sobre um nome que vem essa reflexão.
Ao entrar na casa de alguém, entramos também na vida, na relação com o mundo de que faz parte e os cerca e levamos, para dentro também o nosso mundo, os confrontos afetivos  se estabelecem, e desse confronto de mundos e naturezas impares e únicas nascem novos devires, necessidades e podem, ou não, mudar rumos e estabelecer laços fortes ou até mesmo inquebráveis, o amor à vida, a importância de viver o momento dessa vida, nos remete e nos faz entender o que Nietzsche chamou de Eterno Retorno do mesmo e mais ainda, o Amor Fati, o amor ao destino e do valor do instante de vida que se apresenta e que tem que ser percebido, vivido e não remetido a um outros tipos ou necessidades que não seja a valorização da vida.
O tempo se torna passado no presente, o mesmo de Agostinho de Hipona (Santo Agostinho, para alguns), quando nos defrontamos com um simples copo onde alguém muito querido tomou café com um pouquinho, bem pouco, de conhaque. Nesse tempo presente passado, se constrói um discurso onde o que mais tem valor são as emoções e os encontros de mundos, nesse pequeno espaço, figuras desfilam, vidas se cruzam, transformando pessoas distantes em seres presentes que rodeiam e delimitam rumos de conversas, de vidas que se cruzam por simples acaso. Mas que tempo temos? O espaço não seria suficiente? Dúvidas nos seguem e atormentam.
Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas se quiser explicar a quem indaga, já não sei. Contudo, afirmo com certeza e sei que, se nada passasse, não haveria tempo passado; que se não houvesse os acontecimentos, não haveria tempo futuro; e que se nada existisse agora, não haveria tempo presente. Como então podem existir esses dois tempos, o passado e o futuro, se o passado já não existe e se o futuro ainda não chegou? Quanto ao presente, se continuasse sempre presente e não passasse ao pretérito, não seria tempo, mas eternidade. Portanto, se o presente, para ser tempo, deve tornar-se passado, como podemos afirmar que existe, se sua razão de ser é aquela pela qual deixará de existir? Por isso, o que nos permite afirmar que o tempo existe é a sua tendência para não existir.(AGOSTINHO DE HIPONA {Santo Agostinho},

Um ser que vive do ócio, da assídia, com propósito pouco nobre, pelo contrário, traz apenas uma realidade em que explora  e destrói o que foi construído ao seu redor por vidas e pessoas que olharam para frente e para uma família (ou várias).Outro ainda se preocupa com tudo que está a seu redor, fazer bem, fazer certo, agradar aqui, servir acolá, mas presente. Angustias se desvelam, de doenças que não se fala, pouco se sabe, mais uma ainda de um amor traído, e por conta disso se esconde para empreender uma perseguição. Mas a angustia é a  “clareira do ser”, onde se coloca o “desvelamento do ser” como Heidegger nos ensinou, e assim vivemos com ela para um dia o “daisen” encontrar na morte sua completude.
Nos encontros de paixões e amores, o amor de Eros de Platão em que o desejo é seu núcleo, onde é na falta que se concretiza - pois só desejamos o que não temos - o amor Philia de Aristóteles que é o amor alegria que encontramos na perfeição de um cosmo insustentável e ainda no conatus de Espinosa, tudo isso se misturam. Imbecilidade seria nomear qualquer um deles como absoluto ou universal, pois sabemos da nossa condição humana, de uma raça que não se sustenta e cria para si mitos e mundos transcendentes.Encontros que se dão ao sabor do acaso e da vida vivida.
Mas... e o tio? E o sapo? Ahh sim, o motivo desse texto era isso. Esse encontramos mas ainda o significado  da filosofia de Baruc Espinosa. Aqui está uma pequena parte para entendermos o que é entrega. A fragilidade de um pequeno ser que sofre a ausência e perda do ente querido, a fortaleza e a menina, uma fragilidade sentida por todos, homens, animais - enfim um gavião quase pousa-lhe no ombros, sentindo essa fragilidade -  e o acaso lhe coloca protegida pelos que a cercam. Mas .... Na estante,  uma fotografia, um ser imponente, vistoso, o Sapo, não o tio de Tempo e o vento mas o Tio de carne e osso, cheio de vida, que empreendeu e deu tudo para proteger a fragilidade daquela que  se tornaria uma doçura frágil, sim... frágil mas protegida por todos que a cercam e a amam.
O Tio se foi, mas ensinou como proteger sem deixar que a insolência tomasse conta de um ser tão frágil, frágil sim... mas de uma significação inquestionável.



*Esse texto foi feito por ocasião de encontros que coloco com divisor de águas na minha incompletude. (abril de 2013) 

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