Quando começa a vida humana?
Em uma modernidade líquida, segundo Zygmunt Bauman, ou uma sociedade globalizada e com perspectivas de uma Ética Planetária, defendida por Edgar Morin, o tema da bioética se impõe como uma reflexão necessária. É por esse motivo que publicamos aqui, em nosso blog, um texto de Jorge Forbes sobre a vida e onde ela começa, pois onde ela termina todos sabemos. Lembrando Heidegger que somos "o ser-para-a morte", podemos usar o texto para refletir a respeito da vida e a ética.
Dez Aforismos Pela Vida (*)
Jorge
Forbes
Quando começa a vida? Essa é a questão fundamental que nos reúne nesta noite: “Quando começa a vida?”, para que a vida já começada de milhões de pessoas possa melhorar ou continuar?
Os organizadores, a quem agradeço o convite, pediram-me para falar até dez minutos. A prudência aconselhou-me a redigir um texto para que o entusiasmo das idéias e o calor da expressão, não gerem descortesia para com os companheiros de mesa e o público.
Optei, então, por escrever e ler dez aforismos pela vida.
Quando começa a
vida humana? É necessário precisar a questão. Vida e vida humana não se
equivalem, não são sinônimos. Nisso estamos todos de acordo. Um chuchu pode
estar vivo, uma vaca pode estar viva, uma parte do corpo humano, como a córnea,
pode estar viva, todos contribuem à manutenção da vida humana, mas não
respondem à pergunta que nos reúne.
Quando começa a
vida humana? Será que é a ciência que vai nos responder precisamente? Ora, o
paradoxo epistemológico determina que na ciência o que se realiza, pode ou não
ser científico, segundo critérios bem definidos e compartidos nas academias -
mas a razão, a importância daquilo que se produz - razão no sentido de motivo -
isso não é passível de ser provado cientificamente; o que não diminui em nada a
importância dos cientistas nesse debate, mas os reposiciona. Aqueles que
diariamente contribuem para os avanços da ciência desenvolvem especial
sensibilidade a seu emprego ético; pronunciei a palavra um tanto desgastada:
ética. Estamos em uma encruzilhada ética. Teremos que diferenciar ética de
moral. Ética como as condutas que se adotam frente à variedade humana; moral
como a padronização de uma dessas variações defendida por grupos de influência,
por razões não científicas. Assim, dizer boa ou má ética já é, em si, uma
atitude moral.
Quando começa a
vida humana? Não será como a de todos os animais, na concepção, no encontro de
um óvulo com o espermatozóide? O poeta Keats compõe em um jardim de Hampstead,
em abril de 1819, sua “Ode a um rouxinol”. O rouxinol que Keats ouvia naquele
jardim era o eterno rouxinol, o mesmo que foi ouvido por Ovídio ou por
Shakespeare, mas, para sua tristeza, ele, Keats, não era o mesmo que Ovídio e
Shakespeare; constatação que só piorou o seu desconsolo. Assim somos nós, os
humanos: indivíduos da mesma espécie, mas não a mesma espécie de indivíduos.
Quando começa a
vida humana? E nela, o que nos diferencia dos animais? O fato de sermos seres
da linguagem e não do instinto. Uma mula é sempre uma mula; um macaco, sempre
um macaco; um cachorro, sempre um cachorro. O homem pode se comportar como uma
mula, fazer uma macaquice ou uma cachorrada. O homem não é sempre um homem, é o
único animal que duvida, a começar de si próprio, como diria Ruy.
Quando começa a
vida humana? As variadas respostas indicam suas dependências aos pontos de
vista adotados. Não há um consenso. As respostas mais comuns são que a vida
humana começa: a) No momento da fecundação, quando um espermatozóide penetra um
óvulo e seus núcleos se combinam; b) Quando o sistema nervoso atinge uma
formação suficiente para o seu funcionamento autônomo, entre o terceiro e o
quinto mês de gestação; c) No momento do nascimento, ao se cortar o cordão
umbilical; e ainda d) Quando o ser tem condições de fazer os primeiros
registros de memória, reagindo ao aparecimento e desaparecimento de uma pessoa
próxima – o chamado “sinal do espelho”.
Quando começa a
vida humana? Ë fácil constatar que começa em uma data dependente de uma
convenção, não de uma prova científica. Salvo a primeira idéia – a do momento
da concepção –, bravamente defendida por grupos religiosos militantes, os
outros segmentos sociais não têm dificuldade em concordar que o mais cedo que a
vida humana começa é com a autonomia do sistema nervoso central. E isso porque
já é de boa aceitação que a morte é, em nossa sociedade, definida pelo oposto,
a saber, pela parada de funcionamento do sistema nervoso. Aí, nesse momento,
coração bate, pulmão respira, estômago digere e, no entanto, há vida, mas não
vida humana – razão que possibilita a fundamental doação de órgãos. Por que não
nos é claro o oposto? Se um corpo inteiro funcionando está morto com a parada
do cérebro, como um conjunto de quatro a oito células indiferenciadas, fora do
organismo, congeladas, in vitro, pode ser chamado de vida humana – e seu uso
terapêutico, de assassinato de indefesos?
Quando começa a
vida humana? Estive no Supremo Tribunal Federal, na audiência pública em que
seus ministros ouviram cientistas de posições opostas como parte do julgamento
da ADIN-Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o uso de células-tronco
embrionárias em pesquisa e terapia. Três notas que dispensam comentários: 1) De
uma assim chamada cientista – “No zigoto de Mozart, já estavam escritas suas
sonatas; no de Drummond, seus poemas”. 2) Do ex-procurador geral da República,
autor da ADIN - “A doutora Mayana Zatz, que é o principal elemento de quem
pensa diferentemente da gente, tem também uma ótica religiosa, na medida em que
ela é judia e não nega o fato”. 3) O site de publicações científicas Medline
indica, entre os cientistas ouvidos pelo Supremo Tribunal Federal, que aqueles
a favor das pesquisas com células-tronco embrionárias, já publicaram 257
trabalhos nesse campo, enquanto os que são contra publicaram 7.
Quando começa a
vida humana? Dizia ser uma questão ética. A grossíssimo modo, dividiríamos em
grandes períodos: uma ética do temor de Deus, reinante até o Iluminismo; uma
ética da razão, dele até o final do século passado; e uma ética da
responsabilidade e do desejo (Hans Jonas e Jacques Lacan, entre outros) desde
então. Nessa ética atual, não cabe o argumento de que o melhor é não começar
essas pesquisas, pois sabemos qual será a próxima, aonde elas vão nos levar,
como dizem os velhos sábios e seus jovens e garbosos acólitos, em tom
profético-ameaçador. Na ética de nossos dias, é de nossa responsabilidade não
só o conhecido, mas também o descoberto, a invenção. Não há um outro que zele
por nós de quem devemos aguardar o sopro esclarecedor. Não temos porque
enxergar nos cientistas criminosos disfarçados, a não ser, em nossas fantasias.
Quando começa a
vida humana? Vim para esta mesa sabendo que temos posições diferentes e pouco
flexíveis. O que pretendi foi só dizer da minha opção: não desisto de
reconhecer no ser humano o estatuto da dúvida, que lhe é inerente, e não almejo
para ele a semelhança de uma vaca instintiva, que define sua trajetória no
primeiro encontro de um espermatozóide com um óvulo.
Quando começa a vida humana? Em muitos momentos. Quando, por exemplo, as pesquisas com células-tronco embrionárias possibilitarem devolver os movimentos dos braços e das pernas à vereadora Mara Gabrilli, organizadora desse encontro, para que possamos sentir o seu abraço.
São Paulo, 20 de junho de 2007
(*) Apresentado no debate: "Células-tronco embrionárias: usar ou não para pesquisa?" promovido pelo Professor e Presidente Fernando Henrique Cardoso, pela vereadora Mara Gabrilli e pela OAB-SP, no Salão Nobre da Câmara Municipal de São Paulo, na noite de quarta-feira, 20 de junho de 2007.
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