Vidas de Nietzsche


Filósofo brasileiro analisa duas importantes biografias do autor de ‘Assim falou Zaratustra’, uma delas não traduzida no Brasil. Ambos autores mostram que não é possível diferenciar vida e obra quando se trata do filósofo-poeta.
Por: Oswaldo Giacoia Junior
Publicado em 26/01/2013 | Atualizado em 26/01/2013
Friedrich Nietzsche (1844-1900), cuja obra foi marcada por incompreensões, ousou filosofar a golpes de martelo para anunciar a ‘morte de Deus’ aos seus assassinos. (ilustração: Cavalcante)
Os estudos brasileiros da filosofia de Friedrich Nietzsche (1844-1900), mesmo com os inequívocos avanços consolidados nas últimas décadas, continuam a carecer de pesquisa biográfica aprofundada, que constitui recurso inestimável para a compreensão das circunstâncias sócio-históricas, psicológicas, econômicas, políticas, culturais e familiares nas quais se insere todo pensador enquanto indivíduo empírico e pessoa. Toda filosofia é caudatária de seu tempo, ainda que seja também lícito entendê-la como a má consciência e instância crítica para o julgamento de seu tempo.
As biografias de Nietzsche escritas por Rüdiger Safranski (2000) e Curt Paul Janz (1978-79) situam-se entre aquelas que desempenham essa importante tarefa, fornecendo preciosos subsídios para evidenciar que a relevância da obra transcende as limitações particulares e as idiossincrasias do período histórico e cultural no qual transcorreu a vida do filósofo. Com isso, exibem uma verdade que ainda hoje nos concerne e dá a pensar.
Nietzsche - Biografia de uma tragédia 
Rüdiger Safranski
 
São Paulo, Geração Editorial, 364 p., R$ 59
 
Nietzsche. Biographie 
(sem tradução no Brasil)
 
Curt Paul Janz
 
München, DTW, três volumes
A tradução brasileira desses livros, segundo padrões e exigências histórico-crítico-filológicas correspondentes ao desenvolvimento da filosofia no Brasil, torna-se, assim, uma necessidade urgente e um interessante caminho a ser trilhado.
Até hoje, não foi também traduzida entre nós a volumosa biografia escrita por Charles Andler (Nietzsche, sa vie et sa pensée, no título original), publicada de 1920 a 1931. Os estudiosos de Nietzsche, que não podem prescindir da contribuição de Andler, são compelidos a lê-la em francês ou em tradução para outro idioma que não o português. Rüdiger Safranski conheceu melhor sorte: literato contemporâneo, com forte impacto nos círculos midiáticos, teve traduzidas no Brasil três biografias: além da já citada, de Nietzsche, as de Martin Heidegger e, mais recentemente, de Schopenhauer.
Sua biografia de Nietzsche não é tão extensa quanto a de Charles Andler, mas, sendo mais recente, beneficiou-se dos progressos nos estudos nietzscheanos, advindos da publicação simultânea em alemão, francês e italiano da edição histórico-crítico-filológica dos escritos de Nietzsche, iniciada no final dos anos 1960 por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Essa edição firmou um marco nos estudos sobre Nietzsche. 
A tradução brasileira desses livros, segundo padrões e exigências histórico-crítico-filológicas correspondentes ao desenvolvimento da filosofia no Brasil, torna-se uma necessidade urgente
Karl Schlechta, em sua edição de 1956, já havia denunciado a manipulação que deu origem à compilação póstuma A vontade de poder, revelando o arbitrário procedimento na seleção dos textos editados sob auspícios da irmã do filósofo, Elisabeth Förster-Nietzsche: tanto na edição de 1901, com 483 aforismos, quanto na definitiva, publicada por ela e Heinrich Köselitz, com 1067 aforismos, vinda a lume em 1906.
Embora Schlechta tivesse provado que a compilação seguira critérios histórico-filológicos insustentáveis, como a reunião temática de textos extraídos de manuscritos cronologicamente muito diferentes, bem como retirados de seus contextos argumentativos originais, ainda assim conservou, em sua edição, o mesmo conteúdo publicado por Köselitz e Förster-Nietzsche na última edição de A vontade de poder.
Colli e Montinari organizaram então a primeira edição confiável de Nietzsche em alemão, a base textual segura para as traduções simultaneamente publicadas em italiano e francês, num trabalho que prossegue até hoje, levado a efeito pelos sucessores dos germanistas italianos.
A edição Colli/Montinari constitui a fonte dos estudos rigorosos e academicamente qualificados da obra de Nietzsche em todo o mundo, um benefício que também se estendeu à publicação dos Nietzsche-Studien, o mais importante anuário da Nietzsche-Forschung internacional.
A biografia de Safranski é herdeira desse legado; dispondo desses recursos, ela não se limita a uma crônica histórica da vida do filósofo, senão que empreende também uma reconstituição das circunstâncias nas quais se desenham todas as modulações que marcam a sequência dos livros, pesquisando as fontes teóricas e o campo de surgimento de questões e problemas, o diálogo crítico com a tradição histórica e a polêmica com os contemporâneos, explorando, com inspiração e êxito, a importância da arte (sobretudo da música) como elemento central de seu pensamento.
A biografia escrita pelo filósofo alemão Rüdiger Safranski não se limita a uma crônica da vida do filósofo. O livro reconstitui a polêmica de Nietzsche com seus contemporâneos e destaca o papel da arte, especialmente da música, como elemento central de seu pensamento.
Em Nietzsche, não se pode dissociar vida e obra, pois a vida é a matéria experimental da obra, que transfigura em conceitos suas mais íntimas e decisivas vivências. Fiel a essa diretriz, o empreendimento de Safranski justifica-se plenamente, pois examina a trajetória de Nietzsche, com seus percalços e transtornos, num ritmo marcado pelas peripécias da enfermidade crônica, que leva, finalmente, ao colapso mental em 1888.
O compromisso de Nietzsche consigo mesmo, a necessidade de empenhar-se nos experimentos mentais que lhe descortinavam sempre novas perspectivas, levaram-no a renunciar ao prestígio de catedrático, impelindo-o a uma vida nômade, ansiando por paisagens aprazíveis, em modestas habitações, cujo pagamento lhe era possível com os parcos recursos assegurados pela pensão que lhe fora concedida pela universidade de Leipzig. 
Marcada por incompreensões, decepções profundas com o silêncio em torno de suas obras, por frustrações amorosas e familiares, oprimido pela solidão, brotam de seu lavor as mais encantadoras figuras de pensamento, as mais audaciosas provocações de quem ousou filosofar a golpes de martelo, para anunciar a ‘morte de Deus’ aos seus assassinos.
Autoexame, dissecação na própria carne, são vivências que aguçam o olhar, multiplicando os campos de visão, e que a biografia de Safranski reconstitui. Nietzsche, que se considerava o primeiro psicólogo entre os filósofos, sabe que não pode, como escreve em A gaia ciência, “senão transpor seu estado, a cada vez, para a mais espiritual forma e distância”, pois isso, justamente, é a filosofia – ‘arte da transfiguração’.
O livro de Janz é, por certo, ambicioso: o primeiro volume aproveita um trabalho historiográfico de Richard Blunck, dedicado às origens familiares, à infância e juventude do filósofo. Penetramos no austero ambiente doméstico, conhecemos as experiências traumáticas da morte do irmão mais novo e do pai, assim como a influência das presenças femininas em sua infância.
Como Hölderlin, Novalis e os irmãos Schlegel, Nietzsche foi aluno do seleto instituto humanista de Schulpforta; mais tarde, cursou teologia e filologia na universidade. Janz descreve cronologicamente a ruptura com os estudos teológicos e com o ideal familiar do sacerdócio; o calvário da enfermidade, a polêmica que cercou a recepção de seu primeiro livro, O nascimento da tragédia, recebido com desdém e acerba crítica; refaz, enfim, o percurso do pensador que foi o sismógrafo dos movimentos culturais mais relevantes da modernidade.


Composta de três volumes, a biografia monumental escrita por Curt Paul Janz vai da infância de Nietzsche à descrição minuciosa de sua enfermidade até o colapso mental. O autor suíço refaz o percurso do pensador que captou os movimentos culturais mais relevantes da modernidade.
Janz também é beneficiário da edição Colli/Montinari e dos Nietzsche-Studien, o que transparece em cada momento da biografia, também no extenso terceiro volume, quase todo ele ocupado pela descrição dos meandros da enfermidade até o colapso mental em Turim.
Janz refaz a guinada da obra estética inicial para a disciplina científica de Humano demasiado humano, o solapamento de alicerces da moral em Aurora, e o prodigioso acontecimento de Assim falou Zaratustra. Examina com detalhes a obra de maturidade – de Para além de bem e mal a O anticristo e Ecce Homo –, mostrando como cada crise encontra sua resolução no acervo fabuloso do filósofo-poeta.
Se temos hoje outros estudos biográficos mais recentes, a biografia de Janz permanece indispensável, pois que condensa o essencial, auxiliando na compreensão da obra do filósofo. Pela relevância dessa contribuição, essa seria uma indicação preciosa, tanto para editores como para grupos de pesquisa brasileiros interessados na obra de Nietzsche.
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Oswaldo Giacoia Junior
Professor do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas.


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